– Que vida interessante a do primo Basílio! – pensava.
– O que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as malas, partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos montes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que conhecia nos romances – a Escócia e os seus lagos taciturnos, Veneza e os seus palácios trágicos; aportar às baías, onde um mar luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pescadores, de teto chato, onde vivem as Grazielas, ver azularem-se ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo! Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era caseiro, tão lisboeta!
Como seria o patriarca de Jerusalém? Imaginava-o de longas barbas brancas, recamado de ouro, entre instrumentações solenes e rolos de incenso! E a princesa de La Tour d’Auvergne? Devia ser bela, de uma estatura real, vivia cercada de pajens, namorara-se de Basílio. – A noite escurecia, outras estrelas luziam. – Mas de que servia viajar, enjoar nos paquetes1, bocejar nos vagões, e, numa diligência muito sacudida, cabecear de sono pela serra nas madrugadas frias? Não era melhor viver num bom conforto, com um marido terno, uma casinha abrigada, colchões macios, uma noite de teatro às vezes, e um bom almoço nas manhãs claras quando os canários chalram2? Era o que ela tinha. Era bem feliz! Então veio-lhe uma saudade de Jorge; desejaria abraçá-lo, tê-lo ali, ou quando descesse ir encontrá-lo fumando o seu cachimbo no escritório, com o seu jaquetão de veludo. Tinha tudo, ele, para fazer uma mulher feliz, orgulhosa: era belo, com uns olhos magníficos, terno, fiel. Não gostaria de um marido com uma vida sedentária e caturra3; mas a profissão de Jorge era interessante; descia aos poços tenebrosos das minas; um dia aperrara4 as pistolas contra uma malta revoltada; era valente; tinha talento! Involuntariamente, porém, o primo Basílio fazendo flutuar o seu bornous branco pelas planícies
da Terra Santa, ou em Paris, direito na almofada, governando tranquilamente os seus cavalos inquietos – davam-lhe a ideia de uma outra existência mais poética, mais própria para os episódios do sentimento.
(Eça de Queirós. O primo Basílio, 1993.)
1 paquete: navio
2 chalrar: soltar a voz, como a arremedar a fala (especialmente aves como
arara, papagaio, ganso etc.)
3 caturra: retrógrada, ultrapassada
4 aperrar: engatilhar
Em O primo Basílio, há um matrimônio efetuado “no ar” por Luísa, uma adolescente tonta de todo e cheia duma vida imaginativa e vegetativa, que se revela frágil com o afastamento do marido, Jorge, que viaja para o Alentejo a fiscalizar suas “minas”, e a chegada do sedutor, o primo Basílio.
(Massaud Moisés. A literatura portuguesa, 1999. Adaptado.)