TEXTO:
Os preconceitos não são inúteis. Eles têm uma
função importantíssima na economia psíquica do
preconceituoso. Sem os preconceitos, a vida do
preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos
[5] servem, na prática, para favorecer uns e desfavorecer
outros, para confirmar certezas incontrastáveis, manter
a ordem e descontextualizar os fenômenos. São parte
fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem
para mistificar, para manipular, mas servem, sobretudo,
[10] para sustentar um ideal falso na pessoa do
preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal de
“superioridade”, sem o qual os preconceitos seriam
eliminados porque perderiam, aí sim, a sua função
fundante.
[15] Ainda que sejam psicológicos e não lógicos, daí a
aparência de irracionalidade, os preconceitos funcionam
a partir de uma lógica binária, bem simples, uma espécie
de “lógica da identidade”, mas em um sentido muito
elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a
[20] vida, as culturas, as sociedades, as pessoas, ao
parâmetro “superior-inferior”. [...]
Vivemos tempos de descompensação emocional
profunda, em uma espécie de vazio afetivo (junto com
um vazio do pensamento e um vazio da ação que se
[25] resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto
de mercadorias). Nesses tempos, a oferta de
preconceitos se torna imensa. No sistema de
preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme
uma estranha oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir
[30] o ódio, que é o afeto básico do preconceito, contra eles.
Se há mulheres, homossexuais, negros, indígenas,
lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre eles,
conforme haja oportunidade. Verdade que o ódio é sempre
dirigido àquele que ameaça, ou seja, no fundo do ódio
[35] há muito medo. O preconceituoso é, na verdade, em um
sentido um pouco mais profundo, alguém que tem muito
medo, mas, em vez de enfrentar seu medo com coragem,
ele usa a covardia, justamente porque é impotente para
enfrentar seu próprio medo.
[40] O preconceituoso é, basicamente, um covarde.
Tendo isso em vista, é importante falar de um
preconceito que está em voga nesse momento: o
anti-intelectualismo. Há um ódio que se dirige
atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência,
[45] ao esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo,
esse ódio é velado, pois o lugar do saber é um lugar de
poder que é interessante para muitos. Se podemos falar
em “coronelismo intelectual” como um uso elitista do
conhecimento, e de “ignorância populista” como um uso
[50] elitista da ignorância, como duas formas de exercer o
poder manipulando o campo do saber, podemos falar
também de um ódio à inteligência, do seu apagamento.
Há, dividindo espaço com opressões próprias ao
campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua
[55] forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona
com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de
desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a
ignorância que serve de base para todos os preconceitos.
O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se
[60] insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível
institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo
criminalizados. [...]
Em meio à onda anti-intelectualista, não causa
surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar
[65] com categorias pré-modernas, como o “messianismo” e
a “peste”. O messianismo identifica-se com a construção
de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados,
bravos e destemidos, mas que não são necessariamente
cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma
[70] performance política em que gritar e esbravejar provocam
efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um
dos problemas brasileiros como um mal indeterminado,
em sua extensão, em suas formas e em suas causas,
mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas
[75] iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e
“peste”, fenômenos típicos de um conservadorismo
carente de reflexão, onde desaparece o saber e a
educação.
TIBURI, Marcia e CASARA, Rubens. Ódio à inteligência: sobre o antiintelectualismo. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2016/ 10/50931/>. Acesso em: 08 nov. 2016.
“Vivemos tempos de descompensação emocional profunda, em uma espécie de vazio afetivo” (l. 22-23)
Há uma característica desses “tempos” em
I. Mudança de alvo do ódio e dos preconceitos.
II. Aumento significativo da manifestação de preconceitos.
III. Desequilíbrio psicológico que gera uma reação de esquiva.
IV. Consumo alienado de bens materiais e de formas de pensar.
V. Decepção com os “salvadores da pátria” pelo fracasso da política.
A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a