Senhor diretor, estou escrevendo esta carta porque temo pela minha saúde mental, e se algo acontecer comigo quero que todos saibam o motivo, principalmente o senhor, do qual eu esperava toda a compreensão, já que partilha comigo a crença de que só com um profundo respeito à gramática da língua portuguesa construiremos uma nação desenvolvida. O caso, senhor, é que o Grande Pajé está me perseguindo, e tenho certeza de que neste exato momento ele está ali, do outro lado da janela, escondido entre as folhas da amendoeira... e não resistirei a mais um ataque... Minhas força... forças!... estão se esgotando!
Sempre fui um dedicado professor de português, o senhor me conhece bem, tantas vezes me elogiou... Trabalho no ensino fundamental de sua escola há mais de vinte anos! Desde quando ainda se dizia “1º grau”! Sempre tive devoção pela língua portuguesa! É uma verdadeira religião para mim! Luto contra as gírias, os estrangeirismos e os erros gramaticais como um cristão contra os hereges! Minha luta pelo emprego do português correto é uma verdadeira cruzada! Uma guerra santa! E agora, quando mais preciso de apoio, quando descubro o verdadeiro inimigo por trás da falência a que o nosso idioma pátrio está condenado, quando passo a sofrer ameaças diretas do Grande Pajé, o senhor me abandona, e, em vez de se aliar a mim numa batalha sem trégua pelo resgate de nossa língua, em vez de acreditar em mim, francamente... me manda procurar um psiquiatra!
Mas não entregarei os pontos! Os pontos! Minha mente morrerá lutando! Se o Grande Pajé afinal conseguir seu intento, e plantar à força a semente da língua Tupi dentro da minha cabeça, através desta carta o povo brasileiro saberá que lutei até o fim!
Tudo começou naquela tarde de sábado, quando fui lavar meu carro e o rapaz me cobrou “dez real”. Depois deixei o carro numa vaga, e me custou “dois real”. O camelô me ofereceu “três cueca”, minha empregada tinha pedido “quatro quilo de batata”, o feirante me ofereceu “seis limão”, outro gritou “os peixe tão fresco!”; depois, meu porteiro se prontificou a levar “as sacola” até o elevador e deu o recado de que “meus filho” ainda não tinham chegado “das compra”. Desesperado, me dei conta de que os plurais estavam sumindo!
JAF, Ivan. In: CAMPOS, Carmen Lucia da Silva; SILVA, Nilson Joaquim da (Orgs.). Lições de gramática para quem gosta de literatura. São Paulo: Panda Books, 2007.