Fabiano sentou-se desanimado na ribanceira do
bebedouro, carregou lentamente a espingarda com chumbo
miúdo e não socou a bucha, para a carga espalhar-se e
alcançar muitos inimigos. (...) Reacendeu o cigarro,
[5] procurou distrair-se falando baixo. Sinha Terta era pessoa
de muito saber naquelas beiradas. Como andariam as
contas com o patrão? Estava ali o que ele não conseguiria
nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia tudo, e
afinal o branco ainda achava que fazia favor. O soldado
[10] amarelo...
Fabiano, encaiporado, fechou as mãos e deu murros
na coxa. Diabo. Esforçava-se por esquecer uma
infelicidade, e vinham outras infelicidades. Não queria
lembrar-se do patrão nem do soldado amarelo. Mas
[15] lembrava-se, com desespero, enroscando-se como uma
cascavel assanhada. Era um infeliz, era a criatura mais
infeliz do mundo. Devia ter ferido naquela tarde o soldado
amarelo, devia tê-lo cortado a facão. Cabra ordinário,
mofino, encolhera-se e ensinara o caminho. Esfregou a
[20] testa suada e enrugada. Para que recordar vergonha? Pobre
dele. Estava então decidido que viveria sempre assim?
Cabra safado, mole. Se não fosse tão fraco, teria entrado no
cangaço e feito misérias. Depois levaria um tiro de
emboscada ou envelheceria na cadeia cumprindo sentença,
[25] mas isto não era melhor que acabar-se numa beira de
caminho, assando no calor, a mulher e os filhos
acabando-se também.
[...]
Desceu da ribanceira, agachou-se à beira da água
[30] salobra, pôs-se a beber ruidosamente nas palmas das mãos.
Uma nuvem de arribações voou assustada. Fabiano
levantou-se, um brilho de indignação nos olhos.
⎯ Miseráveis.
A cólera dele se voltava de novo contra as aves.
[35] Tornou a sentar-se na ribanceira, atirou muitas vezes nos
ramos do mulungu, o chão ficou todo coberto de
cadáveres. Iam ser salgados, estendidos em cordas.
Tencionou aproveitá-los como alimento na viagem
próxima. Devia gastar o resto do dinheiro em chumbo e
[40] pólvora, passar um dia no bebedouro, depois largar-se pelo
mundo. Seria necessário mudar-se? Apesar de saber
perfeitamente que era necessário, agarrou-se a esperanças
frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse. Aqueles
malditos bichos é que lhe faziam medo. Procurou
[45] esquecê-los. Mas como poderia esquecê-los se estavam ali,
voando-lhe em torno da cabeça, agitando-se na lama,
empoleirados nos galhos, espalhados no chão, mortos? Se
não fossem eles, a seca não existiria. Pelo menos não
existiria naquele momento: viria depois, seria mais curta.
Graciliano Ramos. Vidas secas. Ed. Record, 2003, p. 123-5 (com adaptações).
Tendo como referência a obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, e o fragmento de texto precedente, dela extraído, julgue o item.