Alguém do Rio de Janeiro
Deu dinheiro e remeteu
Porém não sei o que houve
Que cá não apareceu
O dinheiro é tão sabido
Que quis ficar escondido
Nos cofres dos potentados
Ignora-se esse meio
Eu penso que ele achou feio
Os bolsos dos flagelados
Citado por SALIBA, Elias. “Cultura: as apostas da república” In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.). História do Brasil Nação: a abertura para o mundo (1889-1930). 1ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012
O poeta Leandro Gomes de Barros, em 1972, destacou o tratamento conferido pelos poderes públicos aos efeitos da seca nos estados da atual região Nordeste.
No trecho do cordel, esse tratamento era caracterizado por
DIVAGAÇÕES SOBRE AS ILHAS
Quando me acontecer alguma pecúnia1, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não
muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça
e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto
de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado
[5] dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem
viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive
os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro
mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde
[10] fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja,
a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as
espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no
fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo
dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade
[15] de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o
da liberdade nas ilhas. E, antagonista do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do
sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, esquecendo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser
abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago2 com a graça de uma flor criada
[20] para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem
expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano.
Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse3 tão amena,
repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades do ser no momento exato
em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
[25] E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos
regatos – tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio delas. A mesma solidão existe, com diferentes
pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda
o argumento da felicidade: “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua
Pasárgada4: mas será que se procura realmente nas ilhas a ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? (...).
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Adaptado de Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
1Pecúnia: pagamento.
2Pélago: profundidade.
3Soverter: fazer desaparecer.
4Pasárgada: localidade fictícia em poema de Manuel Bandeira onde o eu lírico seria sempre feliz.
No texto, observa-se a criação de ilhas por meio do próprio processo de escrita do autor.
Esse processo está sintetizado no seguinte trecho:
DIVAGAÇÕES SOBRE AS ILHAS
Quando me acontecer alguma pecúnia1, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não
muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça
e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto
de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado
[5] dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem
viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive
os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro
mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde
[10] fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja,
a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as
espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no
fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo
dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade
[15] de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o
da liberdade nas ilhas. E, antagonista do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do
sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, esquecendo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser
abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago2 com a graça de uma flor criada
[20] para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem
expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano.
Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse3 tão amena,
repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades do ser no momento exato
em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
[25] E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos
regatos – tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio delas. A mesma solidão existe, com diferentes
pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda
o argumento da felicidade: “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua
Pasárgada4: mas será que se procura realmente nas ilhas a ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? (...).
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Adaptado de Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
1Pecúnia: pagamento.
2Pélago: profundidade.
3Soverter: fazer desaparecer.
4Pasárgada: localidade fictícia em poema de Manuel Bandeira onde o eu lírico seria sempre feliz.
No segundo parágrafo, há a simulação de um diálogo entre o autor e seus possíveis leitores.
A referência a todos esses enunciadores está presente em:
DIVAGAÇÕES SOBRE AS ILHAS
Quando me acontecer alguma pecúnia1, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não
muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça
e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto
de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado
[5] dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem
viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive
os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro
mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde
[10] fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja,
a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as
espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no
fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo
dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade
[15] de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o
da liberdade nas ilhas. E, antagonista do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do
sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, esquecendo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser
abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago2 com a graça de uma flor criada
[20] para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem
expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano.
Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse3 tão amena,
repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades do ser no momento exato
em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
[25] E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos
regatos – tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio delas. A mesma solidão existe, com diferentes
pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda
o argumento da felicidade: “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua
Pasárgada4: mas será que se procura realmente nas ilhas a ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? (...).
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Adaptado de Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
1Pecúnia: pagamento.
2Pélago: profundidade.
3Soverter: fazer desaparecer.
4Pasárgada: localidade fictícia em poema de Manuel Bandeira onde o eu lírico seria sempre feliz.
Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo dos que mais o possuem. (l. 13-14)
No fragmento acima, há pares de ideias articuladas por uma relação lógica de
DIVAGAÇÕES SOBRE AS ILHAS
Quando me acontecer alguma pecúnia1, passante de um milhão de cruzeiros, compro uma ilha; não
muito longe do litoral, que o litoral faz falta; nem tão perto, também, que de lá possa eu aspirar a fumaça
e a graxa do porto. Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo ponto
de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado
[5] dos homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Porque esta é a ciência e, direi, a arte do bem
viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização.
De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei sempre. Se é que a não sonhamos sempre, inclusive
os mais agudos participantes. Objetais-me: “Como podemos amar as ilhas, se buscamos o centro
mesmo da ação?” Engajados, vosso engajamento é a vossa ilha, dissimulada e transportável. Por onde
[10] fordes, ela irá convosco. Significa a evasão daquilo para que toda alma necessariamente tende, ou seja,
a gratuidade dos gestos naturais, o cultivo das formas espontâneas, o gosto de ser um com os bichos, as
espécies vegetais, os fenômenos atmosféricos. Substitui, sem anular. Que miragens vê o iluminado no
fundo de sua iluminação?... Supõe-se político, e é um visionário. Abomina o espírito de fantasia, sendo
dos que mais o possuem. Nessa ilha tão irreal, ao cabo, como as da literatura, ele constrói a sua cidade
[15] de ouro, e nela reside por efeito da imaginação, administra-a, e até mesmo a tiraniza. Seu mito vale o
da liberdade nas ilhas. E, antagonista do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do
sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, esquecendo-a?
A ilha que traço agora a lápis neste papel é materialmente uma ilha, e orgulha-se de sê-lo. Pode ser
abordada. Não pode ser convertida em continente. Emerge do pélago2 com a graça de uma flor criada
[20] para produzir-se sobre a água. Marca assim o seu isolamento, e como não tem bocas de fogo nem
expedientes astuciosos para rechaçar o estrangeiro, sucede que este isolamento não é inumano.
Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse3 tão amena,
repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades do ser no momento exato
em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos.
[25] E por que nos seduz a ilha? As composições de sombra e luz, o esmalte da relva, a cristalinidade dos
regatos – tudo isso existe fora das ilhas, não é privilégio delas. A mesma solidão existe, com diferentes
pressões, nos mais diversos locais, inclusive os de população densa, em terra firme e longa. Resta ainda
o argumento da felicidade: “aqui eu não sou feliz”, declara o poeta, para enaltecer, pelo contraste, a sua
Pasárgada4: mas será que se procura realmente nas ilhas a ocasião de ser feliz, ou um modo de sê-lo? (...).
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Adaptado de Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.
1Pecúnia: pagamento.
2Pélago: profundidade.
3Soverter: fazer desaparecer.
4Pasárgada: localidade fictícia em poema de Manuel Bandeira onde o eu lírico seria sempre feliz.
E, antagonista do mundo burguês, que outra coisa faz senão aplicar a técnica do sonho, com que os sensíveis dentre os burgueses se acomodam à realidade, esquecendo-a? (l. 16-17)
Os trechos sublinhados apresentam dois perfis de sujeitos, cada um mantendo determinada atitude frente à realidade.
Tais atitudes se caracterizam por estabelecerem, entre si, relação de
COM BASE NO TRECHO ABAIXO, RESPONDA À QUESTÃO.
Inumano seria desejar, aqui, dos morros litorâneos, um cataclismo que sovertesse tão amena, repousante, discreta e digna forma natural, inventada para as necessidades do ser no momento exato em que se farta de seus espelhos, amigos como inimigos. (l. 22-24)
A palavra seus estabelece relação de posse entre espelhos e a palavra