O que segue é o início do romance Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende, que narra a história de Alice, professora
aposentada que vivia em João Pessoa até ser forçada pela filha a deixar tudo para trás e se mudar para Porto Alegre.
Não pergunte por que lhe escrevo. Escrevo porque as
as palavras estão aí, como a cidade, a noite, a chuva, o
rio, diante de mim, dentro de mim, uma torrente de
palavras que não me cumprem.
(Marília Arnaud)
Sei, agora, por que cismei de trazer na bagagem este caderno vazio, trezentas folhas amareladas, com essa Barbie na capa de moldura cor-de-rosa, sabe-se lá de quem era nem como se extraviou na minha casa. Quando Norinha era menina acho que ainda nem existiam esses cadernos da Barbie. [...] Cismei com ele e pronto. Porque eu quero! Por mais que a fúria organizadora da prima Elizete tentasse botá-lo no monte de velharias, quase lixo, para vender na tal “garage sale”* que aprendeu com a filha que foi morar nos Estados Unidos e inventou de fazer com meus trastes.
Minha filha disse O que é isso, mãe? Parece que virou uma velhota sentimental, com esse apego a coisas completamente ultrapassadas. Pronto. Foi o que bastou pra Elizete pegar a deixa e pôr as mãos na massa, esvaziar gavetas e estantes, separar roupas que Vixe, Alice, só servem mesmo pra brechó, ou nem isso, uma velharia! [...] A última peça a sair de minha casa foi a cadeira de balanço [...] onde eu tinha arriado pra ficar, amuada, assistindo ao rebuliço, à derrocada da minha vida tão boinha, e só pensando que, graças a Deus, não tinha ainda posto em prática a decisão de ter um gato, pobrezinho, o que seria dele naquela situação, não é mesmo Wislawa? Isso não é com você não, Barbie, eu disse para outra pessoa.
(Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 77/78)
O contexto legitima a seguinte afirmação: