TEXTO:
O esforço dos pensadores que nos antecederam
deixou pontos de partida muito valiosos. Mas devemos
reconhecer que eles nos falaram de um país que, pelo
menos em parte, deixou de existir. O Brasil de Gilberto
[5] Freyre girava em torno da família extensa da casa-grande,
um espaço integrador dentro da monumental
desigualdade; o de Sérgio Buarque apenas iniciava a
aventura de uma urbanização que prometia associar-se
à modernidade e à cidadania; o de Caio Prado mantinha
[10] a perspectiva da libertação nacional e do socialismo; o
de Celso Furtado era uma economia dinâmica, que
experimentava uma acelerada modernização industrial;
o de Darcy Ribeiro – cujos ídolos, como sempre dizia,
eram Anísio Teixeira e Cândido Rondon – ampliava a
[15] escola pública de boa qualidade e recusava o genocídio
de suas populações mais fragilizadas.
Os elementos centrais com que todos eles
trabalharam foram profundamente alterados nas últimas
décadas. A economia mais dinâmica do mundo, que
[20] dobrou seu produto, cinco vezes seguidas, em 50 anos,
caminha para experimentar a terceira década rastejante.
Todos os mecanismos que garantiram mobilidade social
na maior parte do século XX foram impiedosamente
desmontados, a começar pela escola pública. A
[25] urbanização acelerada concentrou multidões
desenraizadas, enquanto a desorganização do mercado
de trabalho multiplicava excluídos. Tornado refém do
sistema financeiro, o Estado nacional deixou de cumprir
funções estruturantes essenciais. A fronteira agrícola foi
[30] fechada, estabelecendo-se nas áreas de ocupação
recente uma estrutura fundiária ainda mais concentrada
que a das áreas de ocupação secular. Nessa sociedade
urbanizada e estagnada, os meios eletrônicos de
comunicação de massa tornaram-se, de longe, a principal
[35] instituição difusora de desejos, comportamentos e
valores, inoculando diariamente, maciçamente e
irresponsavelmente, uma necessidade de consumo
desagregadora, pois inacessível. “Nunca foi tão grande a
distância entre o que somos e o que poderíamos ser”,
[40] disse recentemente Celso Furtado, antes de nos deixar.
Não temos uma teoria do Brasil contemporâneo.
Estamos em voo cego, imersos em uma crise de destino,
a maior da nossa existência. A História está nos olhando
nos olhos, perguntando: “Afinal, o que vocês são? O
[45] que querem ser? Tem sentido existir Brasil? Qual Brasil?”.
Temos hesitado em enfrentar questões tão difíceis,
tão radicais. Preferimos brincar de macroeconomia. Mas
a disjunção está posta: ou o povo brasileiro, movido por
uma ideia de si mesmo, assume pela primeira vez o
[50] comando de sua nação, para resgatá-la, reinventá-la e
desenvolvê-la, ou assistiremos neste século ao
desfazimento do Brasil. Se ocorrer esse último desfecho,
representará um duríssimo golpe nas melhores
promessas da modernidade ocidental e será um
[55] retrocesso no processo civilizatório de toda a
humanidade. A invenção do futuro se tornará muito mais
penosa para todos.
BENJAMIN, César. Uma certa ideia de Brasil. Revista Interesse Nacional. Disponível em: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/edicoesrevista/uma-certa-ideia-de-brasil/. Acesso em: 6 maio 2014. Adaptado.
A análise da polifonia presente no primeiro parágrafo permite afirmar: