“um mulatinho de doze anos, com cara de malandro e uma invencível predileção pelas roupas sujas e pelas cambalhotas que se tornaram sua maneira habitual de andar; sua obrigação é a de espantar moscas durante o almoço, junto à mesa, com uma bandeirola (que é agora marrom-cinza, seja lá o que tenha sido antes). E me parece mais intolerável que as próprias moscas. Além disso, o menino deve servir o café... bebida que se toma quatro vezes ao dia”
Citado por Maria Cristina Luz Pinheiro Adaptado de Das cambalhotas ao trabalho: a criança escrava em Salvador, 1850-1888.
Dissertação de Mestrado, UFBA, 2003. No Rio de Janeiro, já houve 18 acidentes de trabalho registrados entre menores este ano. No ano passado, foram 94. Os acidentes acontecem mais entre trabalhadores informais sem a ocupação informada. Essas ocorrências respondem por 39% dos acidentes registrados no ano passado no estado. Vêm a seguir atendentes de lanchonete, serventes de obra, repositores de mercadoria e pedreiros.
Adaptado de oglobo.globo.com, 19/05/2014.
Tanto o primeiro texto, com o relato de um estrangeiro na Bahia no século XIX, quanto o segundo, uma notícia de jornal do século XXI, revelam a permanência do seguinte problema social:
TEXTO
O comprador de aventuras
Meu primeiro fascínio por uma vitrina de livros foi com o de uma livraria que ficava bem no caminho
entre o ponto final do meu bonde e o colégio. Não me lembro exatamente do dia em que aquela
promessa de emoções apareceu ante meus olhos; lembro-me dos dias, dos anos que passei por lá,
e do demorado namoro com cada livro.
[5] Eu tinha 11 anos e o que me fascinava era a vitrina dos romances de aventuras. Todos os livros
do Tarzan, em capas e títulos que me deixavam paralisado de indecisão: se tivesse dinheiro para
comprar, qual seria o primeiro? Todos tinham o nome do herói no título e, em seguida, sem vírgula,
um complemento: o Filho da Selva, o Terrível, e o Império Perdido, o Magnífico, e o Leão Dourado,
o Rei dos Macacos... Quando consegui afinal juntar dinheiro (cortando cinema, bala, picolé,
[10] enganando o condutor do bonde, vendendo jornais velhos, ferro-velho, diminuindo algum troco
das compras de mamãe), comprei o primeiro livro da minha vida: Tarzan o Filho da Selva. Depois,
os outros da série, todos. Daí passei para os de espadachins, sempre da mesma vitrina: O Prisioneiro de
Zenda, O Audacioso Maurício de Hentzau, insuperável na ilustração da capa; A Volta de Maurício de
Hentzau. Esgotada a safra, acompanhei o príncipe Íbis, que tinha um triângulo como monóculo; e
[15] logo Robin Hood, e Ivanhoé (considerava-o, orgulhosamente, meu meio xará), e cavaleiros e cruzados.
Quando passei para o Pimpinela Escarlate e para o ladrão de casaca Arsène Lupin, já começara a
trabalhar, as compras eram mais constantes, podia até errar um pouco nas escolhas.
Foi nesse meio tempo, por volta dos 13 anos, que descobri o livreiro Amadeu. Quando o colégio em que
eu estudava se mudou para a avenida Paraná, no meio do caminho havia um livreiro, havia um livreiro
[20] no meio do caminho. Maravilha: Amadeu vendia e comprava livros usados. (...)
Amadeu, brancão, magro, alto, tinha um jeito meio de lado na hora de botar preço nos livros
que comprava de mim, quase um certo desprezo, e como que uma contrariedade ao botar preço
naqueles que me vendia, como se os estivesse avaliando por baixo, quase irritado com aquele
menino:
[25] — Olha aí, As mulheres de bronze, dois volumes enormes, e em troca você dá o quê?
Pegava nos cinco volumes, revirava um por cima do outro como se fossem trastes, e dizia:
— Olha aí, isso aqui ninguém mais lê, ninguém mais lê Pimpinela Escarlate.
Eu sempre tinha de dar algum a mais.
(...)
Passamos alguns anos negociando aventuras. A relação era formal e essencial, perfeita, como
[30] acontece entre necessários.
(...)
Minhas leituras mudavam. Amadeu continuava naquele jeitão comprido de valorizar as coisas dele.
— Quanto está pedindo pelas Memórias do cárcere, Amadeu?
— Ah, a edição está esgotada, os quatro volumes estão muito valorizados.
Penso hoje: como foi que Amadeu viu minhas mudanças como leitor? No começo parecia
[35] desconcertado quando eu comecei a recusar os livros policiais que sempre levava. Ele acompanhava
meus dedos percorrendo fileiras de volumes, tentava captar meus novos critérios. Pegava os volumes
que eu tirava das prateleiras ou das pilhas amontoadas e colocava sobre o balcão, olhava os títulos,
talvez tentasse lembrar que tipo de leitor os vendera. E eu lá, por volta dos 18 anos, vasculhando e
pescando Madame Bovary, os tormentos de Dostoievski, Caetés, Fogo morto, A carne, O amante de
[40] Lady Chatterley...
Sim, o menino dos livros de aventuras tinha virado outro tipo de freguês e Amadeu, perplexo,
tentava decifrá-lo. Mas isso fica para outra crônica.
Ivan Ângelo O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2003.
O título da crônica faz uma síntese poética de como o narrador se sentia em um período de sua vida.
Para elaborar essa síntese, foi utilizada a figura de linguagem denominada:
TEXTO
O comprador de aventuras
Meu primeiro fascínio por uma vitrina de livros foi com o de uma livraria que ficava bem no caminho
entre o ponto final do meu bonde e o colégio. Não me lembro exatamente do dia em que aquela
promessa de emoções apareceu ante meus olhos; lembro-me dos dias, dos anos que passei por lá,
e do demorado namoro com cada livro.
[5] Eu tinha 11 anos e o que me fascinava era a vitrina dos romances de aventuras. Todos os livros
do Tarzan, em capas e títulos que me deixavam paralisado de indecisão: se tivesse dinheiro para
comprar, qual seria o primeiro? Todos tinham o nome do herói no título e, em seguida, sem vírgula,
um complemento: o Filho da Selva, o Terrível, e o Império Perdido, o Magnífico, e o Leão Dourado,
o Rei dos Macacos... Quando consegui afinal juntar dinheiro (cortando cinema, bala, picolé,
[10] enganando o condutor do bonde, vendendo jornais velhos, ferro-velho, diminuindo algum troco
das compras de mamãe), comprei o primeiro livro da minha vida: Tarzan o Filho da Selva. Depois,
os outros da série, todos. Daí passei para os de espadachins, sempre da mesma vitrina: O Prisioneiro de
Zenda, O Audacioso Maurício de Hentzau, insuperável na ilustração da capa; A Volta de Maurício de
Hentzau. Esgotada a safra, acompanhei o príncipe Íbis, que tinha um triângulo como monóculo; e
[15] logo Robin Hood, e Ivanhoé (considerava-o, orgulhosamente, meu meio xará), e cavaleiros e cruzados.
Quando passei para o Pimpinela Escarlate e para o ladrão de casaca Arsène Lupin, já começara a
trabalhar, as compras eram mais constantes, podia até errar um pouco nas escolhas.
Foi nesse meio tempo, por volta dos 13 anos, que descobri o livreiro Amadeu. Quando o colégio em que
eu estudava se mudou para a avenida Paraná, no meio do caminho havia um livreiro, havia um livreiro
[20] no meio do caminho. Maravilha: Amadeu vendia e comprava livros usados. (...)
Amadeu, brancão, magro, alto, tinha um jeito meio de lado na hora de botar preço nos livros
que comprava de mim, quase um certo desprezo, e como que uma contrariedade ao botar preço
naqueles que me vendia, como se os estivesse avaliando por baixo, quase irritado com aquele
menino:
[25] — Olha aí, As mulheres de bronze, dois volumes enormes, e em troca você dá o quê?
Pegava nos cinco volumes, revirava um por cima do outro como se fossem trastes, e dizia:
— Olha aí, isso aqui ninguém mais lê, ninguém mais lê Pimpinela Escarlate.
Eu sempre tinha de dar algum a mais.
(...)
Passamos alguns anos negociando aventuras. A relação era formal e essencial, perfeita, como
[30] acontece entre necessários.
(...)
Minhas leituras mudavam. Amadeu continuava naquele jeitão comprido de valorizar as coisas dele.
— Quanto está pedindo pelas Memórias do cárcere, Amadeu?
— Ah, a edição está esgotada, os quatro volumes estão muito valorizados.
Penso hoje: como foi que Amadeu viu minhas mudanças como leitor? No começo parecia
[35] desconcertado quando eu comecei a recusar os livros policiais que sempre levava. Ele acompanhava
meus dedos percorrendo fileiras de volumes, tentava captar meus novos critérios. Pegava os volumes
que eu tirava das prateleiras ou das pilhas amontoadas e colocava sobre o balcão, olhava os títulos,
talvez tentasse lembrar que tipo de leitor os vendera. E eu lá, por volta dos 18 anos, vasculhando e
pescando Madame Bovary, os tormentos de Dostoievski, Caetés, Fogo morto, A carne, O amante de
[40] Lady Chatterley...
Sim, o menino dos livros de aventuras tinha virado outro tipo de freguês e Amadeu, perplexo,
tentava decifrá-lo. Mas isso fica para outra crônica.
Ivan Ângelo O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2003.
Ao longo do texto, são empregadas outras palavras e expressões que se referem ao mesmo personagem indicado no título do texto.
Um exemplo desse emprego está destacado em:
TEXTO
O comprador de aventuras
Meu primeiro fascínio por uma vitrina de livros foi com o de uma livraria que ficava bem no caminho
entre o ponto final do meu bonde e o colégio. Não me lembro exatamente do dia em que aquela
promessa de emoções apareceu ante meus olhos; lembro-me dos dias, dos anos que passei por lá,
e do demorado namoro com cada livro.
[5] Eu tinha 11 anos e o que me fascinava era a vitrina dos romances de aventuras. Todos os livros
do Tarzan, em capas e títulos que me deixavam paralisado de indecisão: se tivesse dinheiro para
comprar, qual seria o primeiro? Todos tinham o nome do herói no título e, em seguida, sem vírgula,
um complemento: o Filho da Selva, o Terrível, e o Império Perdido, o Magnífico, e o Leão Dourado,
o Rei dos Macacos... Quando consegui afinal juntar dinheiro (cortando cinema, bala, picolé,
[10] enganando o condutor do bonde, vendendo jornais velhos, ferro-velho, diminuindo algum troco
das compras de mamãe), comprei o primeiro livro da minha vida: Tarzan o Filho da Selva. Depois,
os outros da série, todos. Daí passei para os de espadachins, sempre da mesma vitrina: O Prisioneiro de
Zenda, O Audacioso Maurício de Hentzau, insuperável na ilustração da capa; A Volta de Maurício de
Hentzau. Esgotada a safra, acompanhei o príncipe Íbis, que tinha um triângulo como monóculo; e
[15] logo Robin Hood, e Ivanhoé (considerava-o, orgulhosamente, meu meio xará), e cavaleiros e cruzados.
Quando passei para o Pimpinela Escarlate e para o ladrão de casaca Arsène Lupin, já começara a
trabalhar, as compras eram mais constantes, podia até errar um pouco nas escolhas.
Foi nesse meio tempo, por volta dos 13 anos, que descobri o livreiro Amadeu. Quando o colégio em que
eu estudava se mudou para a avenida Paraná, no meio do caminho havia um livreiro, havia um livreiro
[20] no meio do caminho. Maravilha: Amadeu vendia e comprava livros usados. (...)
Amadeu, brancão, magro, alto, tinha um jeito meio de lado na hora de botar preço nos livros
que comprava de mim, quase um certo desprezo, e como que uma contrariedade ao botar preço
naqueles que me vendia, como se os estivesse avaliando por baixo, quase irritado com aquele
menino:
[25] — Olha aí, As mulheres de bronze, dois volumes enormes, e em troca você dá o quê?
Pegava nos cinco volumes, revirava um por cima do outro como se fossem trastes, e dizia:
— Olha aí, isso aqui ninguém mais lê, ninguém mais lê Pimpinela Escarlate.
Eu sempre tinha de dar algum a mais.
(...)
Passamos alguns anos negociando aventuras. A relação era formal e essencial, perfeita, como
[30] acontece entre necessários.
(...)
Minhas leituras mudavam. Amadeu continuava naquele jeitão comprido de valorizar as coisas dele.
— Quanto está pedindo pelas Memórias do cárcere, Amadeu?
— Ah, a edição está esgotada, os quatro volumes estão muito valorizados.
Penso hoje: como foi que Amadeu viu minhas mudanças como leitor? No começo parecia
[35] desconcertado quando eu comecei a recusar os livros policiais que sempre levava. Ele acompanhava
meus dedos percorrendo fileiras de volumes, tentava captar meus novos critérios. Pegava os volumes
que eu tirava das prateleiras ou das pilhas amontoadas e colocava sobre o balcão, olhava os títulos,
talvez tentasse lembrar que tipo de leitor os vendera. E eu lá, por volta dos 18 anos, vasculhando e
pescando Madame Bovary, os tormentos de Dostoievski, Caetés, Fogo morto, A carne, O amante de
[40] Lady Chatterley...
Sim, o menino dos livros de aventuras tinha virado outro tipo de freguês e Amadeu, perplexo,
tentava decifrá-lo. Mas isso fica para outra crônica.
Ivan Ângelo O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2003.
O narrador apresenta suas emoções diante das possibilidades de leituras.
A expressão de uma dessas emoções está contida no seguinte fragmento:
TEXTO
O comprador de aventuras
Meu primeiro fascínio por uma vitrina de livros foi com o de uma livraria que ficava bem no caminho
entre o ponto final do meu bonde e o colégio. Não me lembro exatamente do dia em que aquela
promessa de emoções apareceu ante meus olhos; lembro-me dos dias, dos anos que passei por lá,
e do demorado namoro com cada livro.
[5] Eu tinha 11 anos e o que me fascinava era a vitrina dos romances de aventuras. Todos os livros
do Tarzan, em capas e títulos que me deixavam paralisado de indecisão: se tivesse dinheiro para
comprar, qual seria o primeiro? Todos tinham o nome do herói no título e, em seguida, sem vírgula,
um complemento: o Filho da Selva, o Terrível, e o Império Perdido, o Magnífico, e o Leão Dourado,
o Rei dos Macacos... Quando consegui afinal juntar dinheiro (cortando cinema, bala, picolé,
[10] enganando o condutor do bonde, vendendo jornais velhos, ferro-velho, diminuindo algum troco
das compras de mamãe), comprei o primeiro livro da minha vida: Tarzan o Filho da Selva. Depois,
os outros da série, todos. Daí passei para os de espadachins, sempre da mesma vitrina: O Prisioneiro de
Zenda, O Audacioso Maurício de Hentzau, insuperável na ilustração da capa; A Volta de Maurício de
Hentzau. Esgotada a safra, acompanhei o príncipe Íbis, que tinha um triângulo como monóculo; e
[15] logo Robin Hood, e Ivanhoé (considerava-o, orgulhosamente, meu meio xará), e cavaleiros e cruzados.
Quando passei para o Pimpinela Escarlate e para o ladrão de casaca Arsène Lupin, já começara a
trabalhar, as compras eram mais constantes, podia até errar um pouco nas escolhas.
Foi nesse meio tempo, por volta dos 13 anos, que descobri o livreiro Amadeu. Quando o colégio em que
eu estudava se mudou para a avenida Paraná, no meio do caminho havia um livreiro, havia um livreiro
[20] no meio do caminho. Maravilha: Amadeu vendia e comprava livros usados. (...)
Amadeu, brancão, magro, alto, tinha um jeito meio de lado na hora de botar preço nos livros
que comprava de mim, quase um certo desprezo, e como que uma contrariedade ao botar preço
naqueles que me vendia, como se os estivesse avaliando por baixo, quase irritado com aquele
menino:
[25] — Olha aí, As mulheres de bronze, dois volumes enormes, e em troca você dá o quê?
Pegava nos cinco volumes, revirava um por cima do outro como se fossem trastes, e dizia:
— Olha aí, isso aqui ninguém mais lê, ninguém mais lê Pimpinela Escarlate.
Eu sempre tinha de dar algum a mais.
(...)
Passamos alguns anos negociando aventuras. A relação era formal e essencial, perfeita, como
[30] acontece entre necessários.
(...)
Minhas leituras mudavam. Amadeu continuava naquele jeitão comprido de valorizar as coisas dele.
— Quanto está pedindo pelas Memórias do cárcere, Amadeu?
— Ah, a edição está esgotada, os quatro volumes estão muito valorizados.
Penso hoje: como foi que Amadeu viu minhas mudanças como leitor? No começo parecia
[35] desconcertado quando eu comecei a recusar os livros policiais que sempre levava. Ele acompanhava
meus dedos percorrendo fileiras de volumes, tentava captar meus novos critérios. Pegava os volumes
que eu tirava das prateleiras ou das pilhas amontoadas e colocava sobre o balcão, olhava os títulos,
talvez tentasse lembrar que tipo de leitor os vendera. E eu lá, por volta dos 18 anos, vasculhando e
pescando Madame Bovary, os tormentos de Dostoievski, Caetés, Fogo morto, A carne, O amante de
[40] Lady Chatterley...
Sim, o menino dos livros de aventuras tinha virado outro tipo de freguês e Amadeu, perplexo,
tentava decifrá-lo. Mas isso fica para outra crônica.
Ivan Ângelo O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2003.
Quando consegui afinal juntar dinheiro (cortando cinema, bala, picolé, enganando o condutor do bonde, vendendo jornais velhos, ferro-velho, diminuindo algum troco das compras da mamãe), (l. 9-11)
Em relação ao trecho que o antecede, o conteúdo disposto entre parênteses indica circunstância de:
TEXTO
O comprador de aventuras
Meu primeiro fascínio por uma vitrina de livros foi com o de uma livraria que ficava bem no caminho
entre o ponto final do meu bonde e o colégio. Não me lembro exatamente do dia em que aquela
promessa de emoções apareceu ante meus olhos; lembro-me dos dias, dos anos que passei por lá,
e do demorado namoro com cada livro.
[5] Eu tinha 11 anos e o que me fascinava era a vitrina dos romances de aventuras. Todos os livros
do Tarzan, em capas e títulos que me deixavam paralisado de indecisão: se tivesse dinheiro para
comprar, qual seria o primeiro? Todos tinham o nome do herói no título e, em seguida, sem vírgula,
um complemento: o Filho da Selva, o Terrível, e o Império Perdido, o Magnífico, e o Leão Dourado,
o Rei dos Macacos... Quando consegui afinal juntar dinheiro (cortando cinema, bala, picolé,
[10] enganando o condutor do bonde, vendendo jornais velhos, ferro-velho, diminuindo algum troco
das compras de mamãe), comprei o primeiro livro da minha vida: Tarzan o Filho da Selva. Depois,
os outros da série, todos. Daí passei para os de espadachins, sempre da mesma vitrina: O Prisioneiro de
Zenda, O Audacioso Maurício de Hentzau, insuperável na ilustração da capa; A Volta de Maurício de
Hentzau. Esgotada a safra, acompanhei o príncipe Íbis, que tinha um triângulo como monóculo; e
[15] logo Robin Hood, e Ivanhoé (considerava-o, orgulhosamente, meu meio xará), e cavaleiros e cruzados.
Quando passei para o Pimpinela Escarlate e para o ladrão de casaca Arsène Lupin, já começara a
trabalhar, as compras eram mais constantes, podia até errar um pouco nas escolhas.
Foi nesse meio tempo, por volta dos 13 anos, que descobri o livreiro Amadeu. Quando o colégio em que
eu estudava se mudou para a avenida Paraná, no meio do caminho havia um livreiro, havia um livreiro
[20] no meio do caminho. Maravilha: Amadeu vendia e comprava livros usados. (...)
Amadeu, brancão, magro, alto, tinha um jeito meio de lado na hora de botar preço nos livros
que comprava de mim, quase um certo desprezo, e como que uma contrariedade ao botar preço
naqueles que me vendia, como se os estivesse avaliando por baixo, quase irritado com aquele
menino:
[25] — Olha aí, As mulheres de bronze, dois volumes enormes, e em troca você dá o quê?
Pegava nos cinco volumes, revirava um por cima do outro como se fossem trastes, e dizia:
— Olha aí, isso aqui ninguém mais lê, ninguém mais lê Pimpinela Escarlate.
Eu sempre tinha de dar algum a mais.
(...)
Passamos alguns anos negociando aventuras. A relação era formal e essencial, perfeita, como
[30] acontece entre necessários.
(...)
Minhas leituras mudavam. Amadeu continuava naquele jeitão comprido de valorizar as coisas dele.
— Quanto está pedindo pelas Memórias do cárcere, Amadeu?
— Ah, a edição está esgotada, os quatro volumes estão muito valorizados.
Penso hoje: como foi que Amadeu viu minhas mudanças como leitor? No começo parecia
[35] desconcertado quando eu comecei a recusar os livros policiais que sempre levava. Ele acompanhava
meus dedos percorrendo fileiras de volumes, tentava captar meus novos critérios. Pegava os volumes
que eu tirava das prateleiras ou das pilhas amontoadas e colocava sobre o balcão, olhava os títulos,
talvez tentasse lembrar que tipo de leitor os vendera. E eu lá, por volta dos 18 anos, vasculhando e
pescando Madame Bovary, os tormentos de Dostoievski, Caetés, Fogo morto, A carne, O amante de
[40] Lady Chatterley...
Sim, o menino dos livros de aventuras tinha virado outro tipo de freguês e Amadeu, perplexo,
tentava decifrá-lo. Mas isso fica para outra crônica.
Ivan Ângelo O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2003.
e logo Robin Hood, e Ivanhoé (...), e cavaleiros e cruzados. (l. 14-15)
A estrutura repetida no fragmento expressa, no texto, o relato do narrador de uma ação do seguinte tipo: