Texto para a pergunta.
Fuga
As atitudes inefáveis*,
os inexprimíveis delíquios*,
êxtases, espasmos, beatitudes
não são possíveis no Brasil.
O poeta vai enchendo a mala,
põe camisas, punhos, loções
um exemplar da Imitação*
e parte para outros rumos.
A vaia amarela dos papagaios
rompe o silêncio da despedida.
– Se eu tivesse cinco mil pernas
(diz ele) fugia com todas elas.
Povo feio, moreno, bruto,
não respeita meu fraque preto.
Na Europa reina a geometria
e todo mundo anda – como eu – de luto.
Estou de luto por Anatole
France*, o de Thaïs*, joia soberba.
Não há cocaína, não há morfina
igual a essa divina
papa-fina.
Vou perder-me nas mil orgias
do pensamento greco-latino.
Museus! estátuas! catedrais!
O Brasil só tem canibais.
Dito isso fechou-se em copas.
Joga-lhe um mico uma banana,
por um tico não vai ao fundo.
Enquanto os bárbaros sem barbas
sob o Cruzeiro do Sul
se entregam perdidamente
sem anatólios nem capitólios
aos deboches americanos..
Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia.
(*) Glossário:
“inefáveis”: indizíveis, indescritíveis;
“delíquios”: desfalecimento, desmaio;
“Imitação”: provável referência à obra devocional Imitação de Cristo, de
Tomás de Kempis (1380-1471);
“Anatole France”: escritor francês (1844-1924), membro da Academia
Francesa, bastante conhecido dos leitores e escritores brasileiros do seu
tempo. Thaïs é uma de suas obras mais famosas.
Assim como enunciados na primeira estrofe do poema, os comportamentos, atitudes e sentimentos que o eu lírico considerava possíveis na Europa e impossíveis no Brasil, remetem mais diretamente a características do