Fragmento 1:
“Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo. Escrevo portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de ‘força maior’, como se diz nos requerimentos oficiais, por ‘força de lei’.
E eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais.”
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco,1998, p.18/19.
Fragmento 2:
“Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava ’hora certa e cultura’, e nenhuma música, só pingava em som gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse a precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus.”
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco,1998, p.37.
Fragmento 3:
“Diante da cara um pouco inexpressiva demais de Macabéa, ele até que quis lhe dizer alguma gentileza suavizante na hora do adeus para sempre. E ao se despedir lhe disse: – Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você está ofendida? – Não, não, não! Ah por favor quero ir embora! Por favor me diga logo adeus!.”
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco,1998, p.60.
A partir dos fragmentos e do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector, avalie as assertivas a seguir.
I - O romance de Clarice Lispector não é uma obra linear. Os fragmentos exemplificam a voz de Rodrigo S.M., que é o narrador do romance. Na obra, ele faz considerações estético-metalinguísticas, filosóficas e sociais.
II - O fragmento 1, sobretudo no trecho “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados”, há ênfase no processo de criação da personagem e na tessitura da narrativa.
III - No fragmento 3, o narrador cita a fala do personagem João, no momento em que ele demitiu Macabéa do emprego, uma vez que a moça não conseguia realizar as funções determinadas para ela no trabalho. Ao dizer “você é um cabelo na sopa”, evidencia a insignificância e invisibilidade da nordestina.
IV - Embora Macabéa fosse uma nordestina analfabeta, ao ouvir rádio todas as madrugadas, ela praticamente se tornou uma autodidata e aprendeu muitas informações que a permitiram sobreviver sem a angustiante alienação que tinha antes de migrar para o Rio de Janeiro.
É correto o que se afirma em