Texto 1
A dor
[1] O que torna a tortura atraente é o fato de
que ela funciona. O preso não quer falar,
apanha e fala. É sobre essa simples constatação
que se edifica a complexa justificativa da tortura
[5] pela funcionalidade. O que há de terrível nela é
sua verdade. O que há de perverso nessa
verdade é o sistema lógico que nela se apoia
valendo-se da compressão, num juízo
aparentemente neutro do conflito entre dois
[10] mundos: o do torturador e o de sua vítima.
Tudo se reduz à problemática da confissão.
Assim, a tortura pressiona a confissão e
triunfa em toda a sua funcionalidade quando
submete a vítima. Essa é a hipérbole virtuosa do
[15] torturador. Assemelha-se ao ato cirúrgico,
extraindo da vítima algo maligno que ela não
expeliria sem agressão.
A teoria da funcionalidade da tortura
baseia-se numa confusão entre interrogatório e
[20] suplício. Num interrogatório há perguntas e
respostas. No suplício, o que se busca é a
submissão. O “supremo opróbrio” é cometido
pelo torturador, não pelo preso. Quando a
vítima fala, suas respostas são produto de sua
[25] dolorosa submissão à vontade do torturador, e
não das perguntas que ele lhe fez. Prova disso
está no fato de que nos cárceres soviéticos
milhares de presos confessaram coisas que
jamais lhes haviam passado pela cabeça,
[30] permitindo ao stalinismo construir suas
catedrais conspiratórias.
O poder absoluto que o torturador tem de
infligir sofrimento à sua vítima transforma-se
em elemento de controle sobre seu corpo. No
[35] meio da selva amazônica, espancando um
caboclo analfabeto que pedia ajuda divina para
sustar os padecimentos, um torturador
resumiria sua onipotência embutida: “Que Deus
que nada, porque Deus aqui é nós mesmo”. A
[40] mente insubmissa torna-se vítima de sua
carcaça, que é, a um só tempo, repasto do
sofrimento e presa do inimigo. “O preso só
lastima uma coisa: o ‘diabo’ do corpo continua
aguentando”, lembraria o dirigente comunista
[45] Marco Antônio Coelho. Ainda que a certa altura
a mente prefira a morte à confissão, aquele
corpo dolorido se mantém vivo, permitindo o
suplício.
(GASPARI, Hélio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 37-41. Texto adaptado.)
Ao longo do texto, a palavra “tortura” é substituída por outras, em um processo que se conhece como anáfora. Nesta questão, lidamos com duas anáforas de tortura: “suplício” (linha 21); “supremo opróbrio” (linha 22). Atente ao que se diz a respeito dessas anáforas.
I. O vocábulo “tortura” e suas anáforas – “suplício” e “opróbrio” – estão em uma ordem aleatória, casual. Poder-se-ia mudar a ordem em que foram distribuídos e o texto não seria prejudicado em nenhum nível.
II. A ordem em que os três vocábulos – “tortura”, “suplício” e “opróbrio” – estão dispostos no texto indica uma intenção argumentativa do enunciador, isto é, uma intenção de convencer o leitor sobre as ideias que expressa. Esse cunho argumentativo intensifica-se com o adjetivo “supremo”.
III. O vocábulo supremo significa “que está acima de qualquer coisa; que se encontra no limite máximo”. Assim, esse adjetivo modaliza o discurso do enunciador. Mostra a relação dele com o que está dizendo. No caso do texto, essa relação é de conteúdo assumido: o enunciador assume totalmente o conteúdo do que diz.
Está correto o que se afirma em