TEXTO 1
Poema de sete faces
[1] Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
[5] que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
[10] Para que tanta perna, meu Deus, pergunta
[meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
[15] é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
[20] se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
[25] Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
[30] botam a gente comovido como o diabo.
Carlos Drummond de Andrade. In Alguma poesia, publicado em 1930.
Obs. O "Poema de sete faces", de Carlos Drummond de Andrade, será usado como subsídio (ou suporte) para a leitura do poema "Com licença poética" (texto 2).
TEXTO 2
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
[35] esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
[40] ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
[45] já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado. Bagagem. 24 ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 2007
Carlos Drummond de Andrade inicia seu "Poema de sete faces" (texto 1, linhas 1-3) com os seguintes versos: Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. A partir da comparação desses versos de Drummond com os três versos iniciais do poema de Adélia Prado (texto 2, linhas 31-33), considere as seguintes afirmações:
I. Há, entre esses versos destacados, uma coincidência sintática, semântica e métrica.
II. No poema de Adélia Prado, texto 2, há um caso de polifonia (presença de mais de uma voz).
III. Ocorre, no segundo poema, texto 2, uma subversão do sentido do primeiro (texto 1).
Está correto o que se afirma