Instruções: Leia atentamente o texto abaixo para responder à questão.
Cronista sem assunto
Difícil é ser cronista regular de algum periódico.
Uma crônica por semana, havendo ou não assunto... É
buscar na cabeça uma luzinha, uma palavra que possa
acender toda uma frase, um parágrafo, uma página
[5] inteira – mas qual? Onde o ímã que atraia uma boa li-
malha? Onde a farinha que proverá o pão substan-
cioso? O relógio está correndo e o assunto não vem.
Cronos, cronologia, crônica, tempo, tempo, tempo...
Que tal falar da falta de assunto? Mas isso já aconteceu
[10] umas três vezes... Há cronista que abre a Bíblia em
busca de um grande tema: os mandamentos, um faraó,
o Egito antigo, as pragas, as pirâmides erguidas pelo
trabalho escravo? Mas como atualizar o interesse em
tudo isso? O leitor de jornal ou de revista anda com
[15] mais pressa do que nunca, e aliás está munido de um
celular que lhe coloca o mundo nas mãos a qualquer
momento.
Sim, a internet! O Google! É a salvação. Lá vai o
cronista caçar assunto no computador. Mas aí o pro-
[20] blema fica sendo o excesso: ele digita, por exemplo,
“Liberdade”, e lá vem a estátua nova-iorquina com seu
facho de luz saudando os navegantes, ou o bairro do
imigrante japonês em São Paulo, ou a letra de um hino
cívico, ou um tratado filosófico, até mesmo o “Libertas
[25] quae sera tamen*” dos inconfidentes mineiros... Tenta-
se outro tema geral: “Política”. Aí mesmo é que não pa-
ra mais: vêm coisas desde a polis grega até um poema
de Drummond, salta-se da política econômica para a
financeira, chega-se à política de preservação de bens
[30] naturais, à política ecológica, à partidária, à política
imperialista, à política do velho Maquiavel, ufa.
Que tal então a gastronomia, mais na moda do
que nunca? O velho bifinho da tia ou o saudoso picadi-
nho da vovó, receitas domésticas guardadas no segre-
[35] do das bocas, viraram nomes estrangeiros, sob molhos
complicados, de apelido francês. Nesse ramo da ali-
mentação há também que considerar o que sejam pro-
dutos transgênicos, orgânicos, as ameaças do glúten,
do sódio, da química nociva de tantos fertilizantes. Tu-
[40] do muito sofisticado e atingindo altos níveis de audiên-
cia nos programas de TV: já seremos um país povoado
por cozinheiros, quer dizer, por chefs de cuisine?**
Temas palpitantes, certamente de interesse públi-
co, estão no campo da educação: há, por exemplo,
[45] quem veja nos livros de História uma orientação ideoló-
gica conduzida pelos autores; há quem defenda uma
neutralidade absoluta diante de fatos que seriam indis-
cutíveis. Que sentido mesmo tiveram a abolição da es-
cravatura e a proclamação da República? E o suicídio
[50] de Getúlio Vargas? E os acontecimentos de 1964? Já a
literatura e a redação andam questionadas como itens
de vestibular: mas sob quais argumentos o desem-
penho linguístico e a arte literária seriam dispensáveis
numa formação escolar de verdade?
[55] Enfim, o cronista que se dizia sem assunto de re-
pente fica aflito por ter de escolher um no infinito car-
dápio digital de assuntos. Que esperará ler seu leitor?
Amenidades? Alguma informação científica? A quadra-
tura do círculo encontrada pelo futebol alemão? A situa-
[60] ção do cinema e do teatro nacionais, dependentes de fi-
nanciamento por incentivos fiscais? Os megatons da
última banda de rock que visitou o Brasil? O ativismo
político das ruas? Uma viagem fantasiosa pelo interior
de um buraco negro, esse mistério maior tocado pela
[65] Física? A posição do Reino Unido diante da União
Europeia?
Houve época em que bastava ao cronista ser
poético: o reencontro com a primeira namoradinha, uma
tarde chuvosa, um passeio pela infância distante, um
[70] amor machucado, tudo podia virar uma valsa melan-
cólica ou um tango arrebatador. Mas hoje parece que
estamos todos mais exigentes e utilitaristas, e os jovens
cronistas dos jornais abordam criticamente os rumo-
res contemporâneos, valem-se do vocabulário ligado a
[75] novos comportamentos, ou despejam um humor ácido
em seus leitores, num tempo sem nostalgia e sem
utopias.
É bom lembrar que o papel em que se imprimem
livros, jornais e revistas está sob ameaça como suporte
[80] de comunicação. O mesmo ocorre com o material das
fitas, dos CDs e DVDs: o mundo digital armazena tudo
e propaga tudo instantaneamente. Já surgem incon-
táveis blogs de cronistas, onde os autores discutem
on-line com seus leitores aspectos da matéria tratada em
[85] seus textos. A interatividade tornou-se praticamente
uma regra: há mesmo quem diga que a própria noção
de autor, ou de autoria, já caducou, em função da
multiplicidade de vozes que se podem afirmar num
mesmo espaço textual. Num plano cósmico: quem é o
[90] autor do Universo? Deus? O Big Bang? A Física é que
explica tudo ou deixemos tudo com o criacionismo?
Enquanto não chega seu apocalipse profissional,
o cronista de periódico ainda tem emprego, o que não é
pouco, em tempo de crise. Pois então que arrume as-
[95] sunto, e um bom assunto, para não perder seus
leitores. Como não dá para ser sempre um Machado de
Assis, um Rubem Braga, um Luis Fernando Verissimo,
há que se contentar com um mínimo de estilo e uma
boa escolha de tema. A variedade da vida há de
[100] conduzi-lo por um bom caminho; é função do cronista
encontrar algum por onde possa transitar acompanhado
de muitos e, de preferência, bons leitores.
(Teobaldo Astúrias, inédito)
* Liberdade ainda que tardia.
** chefes de cozinha.
Considerada a situação em que está inserido, o segmento que NÃO está empregado em sentido figurado é: