Leia o trecho inicial de “Perder tempo, vontade, uma cena escura”, de Nuno Ramos, para responder à questão.
Entre o que podemos de melhor e mais generoso, entre todas as chamadas virtudes, que tanta tinta (e tanto sangue) já fizeram derramar, nenhuma se equipara à capacidade de perder tempo. Só humanos perdem tempo, já que dispõem também da possibilidade de ganhá-lo, e se nos diferenciamos claramente dos animais talvez seja pelo exercício desta escolha. Animais cumprem apenas, em linha razoavelmente reta, a lista de suas alternativas, sem diferenciá-las demais. Mas em nós um pequeno demônio grita alto e o tempo todo: Aproveite o dia!, ou Concentre-se!, ou Estude!, ou Ganhe dinheiro!, ou Seja feliz!, ou Agradeça o pão!, ou Obedeça seu chefe!, ou Mergulhe!, ou Ame ou seu semelhante! Quaisquer que sejam os valores em jogo, é sempre a uma produtividade difusa, escondida debaixo de tudo, que este papagaio nervoso se refere, e um Casanova1 ou um Ford2 são, neste sentido, funcionários de um mesmo patrão. É a constância de propósitos e a fuga a qualquer dissipação que estes sistemas, por mais variados, almejam; é ao horror à continuidade anônima de nossa respiração, da queda ou do crescimento dos nossos cabelos ou dos troncos das árvores, à orientação para a luz que têm as avencas, ao propósito autocentrado, mineral, de continuar, imóvel em sua continuidade, que parece a mais antiga vitalidade da vida, é contra isso que todos estes sistemas se lançam. E o pobre indivíduo que olha para fora e se distrai, que medita, inconclusivo, dentro de seu torpor meio pasmado, aquele de quem, usando a velha expressão, a vida passou na janela, este foi, acreditem, quem mais se aproximou do que nela é direto e despido − aquele que abre mão de deixar neste mundo o duplo de sua vitalidade (uma obra literária, dinheiro, uma lancha, uma família), aquele que a cada momento não sabe bem o que está fazendo, onde está pisando (que erra o passo e tropeça na poça do meio fio), o perdulário, o bêbado renitente, o sonado, o suicida que nunca se mata, aquele que fita o muro.
(Ó, 2009. Adaptado.)
1 Giacomo Casanova: aventureiro italiano que viveu no século XVIII e que ficou conhecido por ter dedicado parte da vida a se relacionar com muitas mulheres.
2 Henry Ford: empresário americano, inventor da linha de montagem para automatizar a produção de suas fábricas.