Leia o excerto de Luzia-Homem para as Questão.
O francês Paul – misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral – costumava vaguear pelos ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com esboços de tipos originais, cenas e paisagens – trabalho paciente e douto, perdido no seu espólio de alfarrábios, de coleções de Botânica e Geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como um santo.
Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:
“Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça.”
Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinquenta tijolos.
Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.
Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.
– É de uma soberbia desmarcada – diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.
– A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona – murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes.
– Aquilo nem parece mulher fêmea – observava uma velha alcoveta e curandeira de profissão.
– Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...
– Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! – maldou uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de piranha, toda adornada de jóias de pechisbeque e fios de miçanga, muito besuntada de óleos cheirosos.
– Não diga isso que é uma blasfêmia – atalhou Teresinha loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa.
– Por ela eu puno; meto a mão no fogo...
– Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira...
– Mas você não pode negar que ela vive no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moura de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo...
– Tu a defendes, porque és parceira dela...
– Antes fosse!... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta canalhada de retirantes... Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha...
– Quem perdeu tudo isso para ela achar?... – obtemperou numa rasgada gargalhada de sarcasmo brutal, a roliça cabocla de agudos dentes.
– Qual?... Vão atrás da sonsa!...
– Deixem estar que há de ser como as outras. Em boniteza, verdade, verdade, mete vocês todas num chinelo. Aquilo é mulher para dar e apanhar – disse chasqueando um soldado de linha, destacado no Curral do Açougue, para manter a ordem, pois não raro rixavam e se engalfinhavam mulheres, ou se esboroavam homens por fúteis pretextos: houvera mesmo sérios conflitos e lutas sangrentas, tão abatido estava, naquela pobre gente o senso moral
– Vão ver que você, seu Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...
Crapiúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões dourados, o cinturão e a baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouly da pomada, que lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía, apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal caprichoso, e fútil, a mulher de todas as categorias e condições sociais, talvez porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas manifestações da força.
Contavam dele histórias emotivas, aventuras galantes, feitos de bravura, façanhas na perseguição de criminosos célebres; ele estivera nas escoltas que prenderam o facínora José Gabriel e o cangaceiro Zé Antônio do Fechado, cavaleiro e bravo à antiga, de raça de heróis, os Brilhantes, Ataídes, e Vicente Lopes do Caminhadeira, representantes dispersos, atávicos, espécimes ferozes de banditismo que foi a glória de Portugal, e lhe conquistou mundos, descobrindo-os, roubando-os com a indômita coragem de piratas, consagrados pela imperecível gratidão da pátria à póstera veneração.
Não faltavam ao soldado feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa bem conformada, sem vícios que lhe dessem o realce de um afortunado. Dizia-se, à puridade, nos colóquios da protérvia popular, que, antes de ser recrutado por audácias sensuais, e envergar a farda, fora guarda-costas de um famigerado fazendeiro da Barbalha, onde executara proezas cruéis, de pasmar, em verdes anos, pois mal lhe despontava, então, o buço. Tinha o ativo de três mortes e outros crimes menores, valendo-lhe isto por título ao temeroso respeito do povo.
OLYMPIO, domingos. Luzia-Homem. Tecnoprint: Rio de Janeiro, s/d. p.15-18.
Luzia-Homem faz parte do conjunto de obras do Realismo, escola literária que se opõe ao Romantismo, propondo a objetividade em detrimento da subjetividade na representação do mundo exterior.
Acerca do Realismo, é certo que:
1. propõe uma “leitura” científica da realidade pela arte.
2. o contexto histórico, científico e social influenciou determinantemente suas características estéticas e entre as transformações ocorridas na época estão a crescente urbanização de metrópoles, as teorias de desenvolvimento do ser humano, tal qual a a teoria do evolucionista de Charles Darwin, assim como as teorias marxistas.
3. tinha no procedimento de observação o ponto de partida para o ato criativo.
4. almejava o retrato fiel e parcimonioso, livre de influências ideológicas na representacão da realidade pela literatura.
5. o romance foi tomado como um documento social, livre de preconceitos e ideias deterministas.
6. na prosa e na poesia, concebe a literatura e o homem como determinantes do meio social.
7. contrastado com o Naturalismo, induz o leitor a interpretações e conclusões sobre fatos, enquanto este faz interpretações diretas dos fatos, expondo conclusões ao leitor.
8. focaliza aspectos de natureza sociológica, tal como o faz Machado de Assis, enquanto o Naturalismo focaliza aspectos de natureza “biopsicológica”, tal como o faz Aloísio de Azevedo em O cortiço.
9. tanto quanto o Naturalismo, é considerado anticlerical, antirromântico e antiburguês.
10. tem como tendência na poesia o Parnasianismo, regido pelas leis características da objetividade e descritivismo, marcado também pelos ideais de cientificismo e tentativa de imparcialidade.
A soma dos números das declarações acima corretas é: