Leia o Capítulo II, da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, intitulado “Do livro”, para responder a questão.
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimilo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembroume reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal.
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos Subúrbios, menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras ...?
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma célebre tarde de novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e piores, mas aquela nunca se me apagou do espírito. É o que vais entender, lendo.
Machado de Assis, em Dom Casmurro, ocupou-se, entre outros aspectos, do processo literário. Refletiu e levou seus leitores à reflexão acerca de elementos narrativos que participaram, decisivamente, não só da composição estrutural, mas também do desenvolvimento e da verossimilhança da temática central da obra. Fábio Lucas, ao comentar Dom Casmurro, afirma que “[...] o principal, perante os olhos contemporâneos, reside na validade do texto, sua particular eficácia estética, seu valor como saída para o narrador, sua autonomia como instaurador de um universo próprio, sua remissão à necessidade verbal”.
LUCAS, Fábio. Uma ambiguidade insolúvel. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1992. p. 4.
Acerca da composição semântica e estrutural de Dom Casmurro, analise as seguintes sentenças.
1. A obra apresenta intensa oposição aos paradigmas Românticos, mas legitima modelos Simbolistas.
2. Pela primeira vez, na história da literatura brasileira, esta obra apresenta um defunto-autor.
3. São motes de reflexão na referida obra a mesquinhez e a condição humana, bem como o destino do homem.
4. Há presença marcante de ironia e humor ácido, o que desencadeia, por sua vez, a reflexão intraliterária e, consequentemente, extraliterária.
5. Os personagens presentes na obra são rígidos, retilíneos e inflexíveis psicologicamente, o que denota a retomada de modelos de composição ao modo épico.
6. Há a tentativa, por parte do protagonista, de comprovação da tese naturalista que prevê a herança genética, ao duvidar da paternidade de seu filho Ezequiel.
7. A predominância do tempo cronológico corrobora os fatos narrados por Bento Santiago.
8. Um dos estados psicológicos do narrador, colocado em relevo na narrativa, é o ciúme.
9. O enredo se dá como confissão e, ao mesmo tempo, como reflexão e tentativa de comoção do leitor.
10. A obra destaca a crítica de costumes, bem como apresenta personagens marginalizados.
A alternativa que contempla a soma das sentenças corretas é: