Alta Cirurgia
O cão com dois corações
vagueia pela cidade:
um coração de artifício
e o coração de verdade.
[5] Exulta a ciência, que obrou
tamanha curiosidade:
metade é glória da URSS,
do Brasil a outra metade.
Se o cão é a doçura mesma
[10] em seu natural, que há de
mais carinhoso que um cão
de dupla cordialidade?
Não para aí, no propósito
de servir à humanidade,
[15] a cirurgia moderna,
gêmea da publicidade.
Já pega de outro cãozinho
com a maior habilidade
(não vá um gesto fortuito
[20] lembrar o Marquês de Sade).
Na carne do bicho abrindo
uma vasta cavidade,
implanta-lhe outra cabeça,
que uma não é novidade.
[25] Cão bicéfalo: prodígio
que nos infla de vaidade.
Nem o cérebro eletrônico
o vence em mentalidade.
Se nos furtam dois ladrões,
[30] dois latidos; acuidade
maior, rendimento duplo:
viva a produtividade.
Dois cães que valem por quatro,
“preparou” a Faculdade,
[35] sem perceber entretanto
do Brasil a realidade:
Tanta gente sem cabeça
merecia prioridade,
e ao cão, que já tem a sua,
[40] essa liberalidade.
E o coração, esse, é pena
dá-lo ao cão, que é só bondade,
quando os doutores do enxerto
tinham mais necessidade.”
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alta Cirurgia. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. p. 917.
Segundo o Marquês de Sade (1740-1814),“se uma pessoa é vítima de um crime, ela é vítima de sua própria negligência e não do criminoso”.
Analisando-se essa ideologia do Marquês, o eu lírico, na quinta estrofe, estabelece uma inferência e faz uma defesa irônica, às avessas,