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Reflexões sobre o tempo
(Marcelo Gleiser – professor de física)
Para alguns, os mais pragmáticos, o tempo não tem
nada de misterioso: ele passa, envelhecemos e um dia
morremos, ponto final. Já para outros, este colunista
incluído, o tempo é um paradoxo, nosso grande amigo e
[5] inimigo.
Amigo por nos ensinar a ser pacientes com a
impaciência dos outros, por nos fazer esquecer coisas que
devem ser esquecidas e lembrar aquelas que devem ser
lembradas. Inimigo por interromper vidas e relações,
[10] mudar coisas que não queremos que sejam mudadas, por
nos fazer esquecer coisas que devem ser lembradas. Em
termos psicológicos não temos dúvidas: como ninguém
consegue se lembrar do futuro, o tempo anda sempre
avante.
[15] Mas a situação não é assim tão simples. Em arte,
podemos inventar o futuro no presente, “visualizar” o que
vai ser e tentar dar vida a essa visão. O paradoxo, aqui, é
que toda criação depende apenas do passado: criamos o
futuro re-experimentando e reintegrando o passado. Isso
[20] não significa que tudo já existe; significa apenas que
existem infinitos modos de olhar para trás.
Em física, a direção do tempo não é obviamente para
a frente. Na verdade, as leis da mecânica não distinguem
entre ir avante ou para trás. Imagine, por exemplo, que
[25] alguém tenha filmado uma bola voando da direita para a
esquerda. Se o filme for passado de trás para a frente, a
bola voa da esquerda para direita: quem não esteve
presente durante a gravação, não saberia em qual das duas
situações o tempo vai do passado para o futuro. Dizemos
[30] que as leis da mecânica são reversíveis temporalmente.
Se a física dissesse que o tempo é reversível sempre,
estaria em séria contradição com a realidade que vemos à
nossa volta. (E em nós mesmos.) Basta observarmos o
mundo para saber que o tempo vai para a frente: os dias
[35]passam, coisas mudam, pessoas e animais envelhecem,
planetas giram em torno do Sol, o Sol envelhece, estrelas
nascem e morrem, o próprio Universo cresce cada vez
mais, definindo a direção cosmológica do tempo. Como
então reconciliar estas observações com as leis básicas da
[40] física? A resposta se encontra na complexidade do
sistema: uma bola é um sistema extremamente simples,
sua trajetória para a direita ou para a esquerda é
essencialmente a mesma. Mas um ovo virar omelete, por
exemplo, é um processo irreversível: não vemos um
[45] omelete virar ovo. A diferença é que um ovo pode ser
transformado em omelete através de inúmeros caminhos.
Mas existem poucos modos de se transformar omeletes
em ovos. (Assumindo que todos os ovos são
essencialmente iguais...).
[50] Como mostrou Ludwig Boltzmann, a questão
depende de probabilidades: a probabilidade que todas as
moléculas de um omelete se realinhem em um ovo é
extremamente pequena, tão pequena que o fenômeno é
altamente improvável, quase impossível. Quase mas não
[55] totalmente. Para tal, seriam necessárias incontáveis
interações entre as moléculas de clara e gema seguindo
instruções extremamente específicas: seria necessário um
princípio organizador que pudesse contrariar o fato que
desordem tende a aumentar, um princípio capaz de
[60] transformar desordem em ordem. Um destes princípios é
justamente a arte; outro é a ciência. Ambas dão expressão
à necessidade que temos de integrar nossa experiência do
mundo com quem somos.
GLEISER, M. Folha de S. Paulo, 20 de março de 2005.
Assinale o que for correto.
01) Os dois empregos de dois pontos, nas linhas 12 e 18, têm funções distintas: o primeiro introduz um dado importante a respeito da direção do tempo; o segundo anuncia uma síntese da relação entre o passado e o futuro.
02) Os dois empregos de parênteses (linhas 33, 48 e 49) têm a mesma função de acrescentar um comentário para a argumentação desenvolvida no texto.
04) O emprego de reticências na linha 49 produz o sentido de pensamento inconcluso, dando espaço para o leitor concluir a reflexão.
08) A interrogativa empregada pelo autor (linha 40) não apresenta uma resposta direta no próprio texto, indicando que ela se encontra como uma informação implícita.
16) Entre as sequências “os dias passam” (linhas 34 e 35) e “coisas mudam” (linha 35), a vírgula é obrigatória, pois demarca a separação de duas orações coordenadas assindéticas.