Ao fugir para o Brasil, metade dos Brun ganhou uma perna a mais. O “n” virou “m”. Mas essa perna a mais era um membro fantasma, um ganho que revelava uma perda. (l. 26-27)
Diante da conduta do funcionário do governo brasileiro, é possível inferir a seguinte reação por parte de Pietro Brun:
[1] Pietro Brun, meu tetravô paterno, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos
italianos pobres, em busca de uma utopia que atendia pelo nome de América. Pietro queria
terra, sim. Mas o que o movia era um território de outra ordem. Ele queria salvar seu nome,
encarnado na figura de meu bisavô, Antônio. Pietro fora obrigado a servir o exército como
[5] soldado por anos demais (...). Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que
não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava,
meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova.
Embarcou como clandestino.
Ao desembarcar no Brasil, em 10 de fevereiro de 1883, Pietro declarou o nome completo.
[10] O funcionário do Império, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou-o conforme ouviu.
Tornando-o, no mundo novo, Brum – com “m”. Meu pai, Argemiro, filho de José, neto de
Antônio e bisneto de Pietro, tomou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la.
No início dos anos 1990 cogitamos reivindicar a cidadania italiana. Possuímos todos os
documentos, organizados numa pasta. Mas entre nós existe essa diferença na letra. Antes de
[15] ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial
que substituiu um “n” por um “m”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e
com certeza morreu sem saber. E, se soubesse, não teria se importado, porque era apenas o
nome de mais um imigrante a bater nas costas do Brasil despertencido de tudo.
Cabia a mim levar essa empreitada adiante.
[20] Há uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e
não com a que herdamos. (...) Eu escolho a memória. A desmemória assombra porque não a
nomeamos, respira em nossos porões como monstros sem palavras. A memória, não. É uma
escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade de ressignificar o passado
para ganhar um futuro. Pela memória nos colocamos não só em movimento, mas nos tornamos
[25] o próprio movimento. Gesto humano, para sempre incompleto.
Ao fugir para o Brasil, metade dos Brun ganhou uma
perna a mais. O “n” virou “m”. Mas essa perna a mais era um membro fantasma, um ganho que revelava uma perda.
(...)
Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele
não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como nós, que
[30] resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois
até Pedro Brum.
ELIANE BRUM
Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São Paulo: LeYa, 2014.
No texto, a autora narra fatos e expõe suas opiniões relacionados à vinda de sua família para o Brasil.
Uma dessas opiniões está explicitada em:
[1] Pietro Brun, meu tetravô paterno, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos
italianos pobres, em busca de uma utopia que atendia pelo nome de América. Pietro queria
terra, sim. Mas o que o movia era um território de outra ordem. Ele queria salvar seu nome,
encarnado na figura de meu bisavô, Antônio. Pietro fora obrigado a servir o exército como
[5] soldado por anos demais (...). Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que
não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava,
meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova.
Embarcou como clandestino.
Ao desembarcar no Brasil, em 10 de fevereiro de 1883, Pietro declarou o nome completo.
[10] O funcionário do Império, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou-o conforme ouviu.
Tornando-o, no mundo novo, Brum – com “m”. Meu pai, Argemiro, filho de José, neto de
Antônio e bisneto de Pietro, tomou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la.
No início dos anos 1990 cogitamos reivindicar a cidadania italiana. Possuímos todos os
documentos, organizados numa pasta. Mas entre nós existe essa diferença na letra. Antes de
[15] ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial
que substituiu um “n” por um “m”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e
com certeza morreu sem saber. E, se soubesse, não teria se importado, porque era apenas o
nome de mais um imigrante a bater nas costas do Brasil despertencido de tudo.
Cabia a mim levar essa empreitada adiante.
[20] Há uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e
não com a que herdamos. (...) Eu escolho a memória. A desmemória assombra porque não a
nomeamos, respira em nossos porões como monstros sem palavras. A memória, não. É uma
escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade de ressignificar o passado
para ganhar um futuro. Pela memória nos colocamos não só em movimento, mas nos tornamos
[25] o próprio movimento. Gesto humano, para sempre incompleto.
Ao fugir para o Brasil, metade dos Brun ganhou uma
perna a mais. O “n” virou “m”. Mas essa perna a mais era um membro fantasma, um ganho que revelava uma perda.
(...)
Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele
não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como nós, que
[30] resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois
até Pedro Brum.
ELIANE BRUM
Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São Paulo: LeYa, 2014.
A partir da narrativa de um episódio familiar, a autora elabora reflexões que vão além desse contexto pessoal, generalizando-o.
Essa generalização pode ser observada no emprego da primeira pessoa do plural no seguinte trecho:
[1] Pietro Brun, meu tetravô paterno, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos
italianos pobres, em busca de uma utopia que atendia pelo nome de América. Pietro queria
terra, sim. Mas o que o movia era um território de outra ordem. Ele queria salvar seu nome,
encarnado na figura de meu bisavô, Antônio. Pietro fora obrigado a servir o exército como
[5] soldado por anos demais (...). Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que
não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava,
meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova.
Embarcou como clandestino.
Ao desembarcar no Brasil, em 10 de fevereiro de 1883, Pietro declarou o nome completo.
[10] O funcionário do Império, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou-o conforme ouviu.
Tornando-o, no mundo novo, Brum – com “m”. Meu pai, Argemiro, filho de José, neto de
Antônio e bisneto de Pietro, tomou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la.
No início dos anos 1990 cogitamos reivindicar a cidadania italiana. Possuímos todos os
documentos, organizados numa pasta. Mas entre nós existe essa diferença na letra. Antes de
[15] ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial
que substituiu um “n” por um “m”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e
com certeza morreu sem saber. E, se soubesse, não teria se importado, porque era apenas o
nome de mais um imigrante a bater nas costas do Brasil despertencido de tudo.
Cabia a mim levar essa empreitada adiante.
[20] Há uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e
não com a que herdamos. (...) Eu escolho a memória. A desmemória assombra porque não a
nomeamos, respira em nossos porões como monstros sem palavras. A memória, não. É uma
escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade de ressignificar o passado
para ganhar um futuro. Pela memória nos colocamos não só em movimento, mas nos tornamos
[25] o próprio movimento. Gesto humano, para sempre incompleto.
Ao fugir para o Brasil, metade dos Brun ganhou uma
perna a mais. O “n” virou “m”. Mas essa perna a mais era um membro fantasma, um ganho que revelava uma perda.
(...)
Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele
não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como nós, que
[30] resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois
até Pedro Brum.
ELIANE BRUM
Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras. São Paulo: LeYa, 2014.
Como desertava, meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova. (l. 6-7)
O trecho sublinhado estabelece com o restante da frase o sentido de:
Ao fugir para o Brasil, metade dos Brun ganhou uma perna a mais. O “n” virou “m”. Mas essa perna a mais era um membro fantasma, um ganho que revelava uma perda. (l. 26-27)
A autora associa a troca de letras no registro do sobrenome de seu tetravô à expressão um membro fantasma.
Essa associação constrói um exemplo da figura de linguagem denominada:
[1] O passado anda atrás de nós
como os detetives os cobradores os ladrões
o futuro anda na frente
como as crianças os guias de montanha
[5] os maratonistas melhores
do que nós
salvo engano o futuro não se imprime
como o passado nas pedras nos móveis no rosto
das pessoas que conhecemos
[10] o passado ao contrário dos gatos
não se limpa a si mesmo
aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem
[15] pense em como do lodo primeiro surgiu esta poltrona este livro
este besouro este vulcão este despenhadeiro
à frente de nós à frente deles
corre o cão
ANA MARTINS MARQUES
O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Nos versos de 1 a 6, a poeta vale-se de um recurso para caracterizar tanto o passa do quanto o futuro.
Esse recurso consiste na construção de: