TEXTO I
Quarto de Despejo
“O grito da favela que tocou a consciência do mundo inteiro”
2 de MAIO de 1958. Eu não sou indolente. Há tempos
que eu pretendia fazer o meu diario. Mas eu pensava
que não tinha valor e achei que era perder tempo.
...Eu fiz uma reforma para mim. Quero tratar as pessoas
[5] que eu conheço com mais atenção. Quero enviar sorriso
amavel as crianças e aos operarios.
...Recebi intimação para comparecer as 8 horas da noite
na Delegacia do 12. Passei o dia catando papel. A noite
os meus pés doiam tanto que eu não podia andar.
[10] Começou chover. Eu ia na Delegacia, ia levar o José
Carlos. A intimação era para ele. O José Carlos tem 9
anos.
3 de MAIO. ...Fui na feira da Rua Carlos de Campos,
[15] catar qualquer coisa. Ganhei bastante verdura. Mas
ficou sem efeito, porque eu não tenho gordura. Os
meninos estão nervosos por não ter o que comer.
6 de MAIO. De manhã não fui buscar agua. Mandei o
[20] João carregar. Eu estava contente. Recebi outra
intimação. Eu estava inspirada e os versos eram bonitos
e eu esqueci de ir na Delegacia. Era 11 horas quando eu
recordei do convite do ilustre tenente da 12ª Delegacia.
...o que eu aviso aos pretendentes a política, é que o
[25] povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para
saber descrevê-la.
Estão construindo um circo aqui na Rua Araguaia, Circo
Theatro Nilo.
9 de MAIO. Eu cato papel, mas não gosto. Então eu
[30] penso: Faz de conta que estou sonhando.
10 de MAIO. Fui na Delegacia e falei com o Tenente.
Que homem amavel! Se eu soubesse que ele era tão
[35] amavel, eu teria ido na Delegacia na primeira intimação.
(...) O Tenente interessou-se pela educação dos meus
filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso,
que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do
que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: se ele sabe
[40] disso, porque não faz um relatorio e envia para os
politicos? O Senhor Janio Quadros, o Kubstchek, e o Dr
Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma
pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas
dificuldades.(...) O Brasil precisa ser dirigido por uma
[45] pessoa que já passou fome. A fome tambem é
professora. Quem passa fome aprende a pensar no
proximo e nas crianças.
11 de MAIO. Dia das mães. O céu está azul e branco.
[50] Parece que até a natureza quer homenagear as mães
que atualmente se sentem infeliz por não realizar os
desejos de seus filhos. (...) O sol vai galgando. Hoje não
vai chover. Hoje é o nosso dia. (...) A D. Teresinha veio
visitar-me. Ela deu-me 15 cruzeiros. Disse-me que era
[55] para a Vera ir no circo. Mas eu vou deixar o dinheiro
para comprar pão amanhã, porque eu só tenho 4
cruzeiros.(...) Ontem eu ganhei metade da cabeça de um
porco no frigorifico. Comemos a carne e guardei os
ossos para ferver. E com o caldo fiz as batatas. Os meus
[60] filhos estão sempre com fome. Quando eles passam
muita fome eles não são exigentes no paladar. (...)
Surgiu a noite. As estrelas estão ocultas. O barraco está
cheio de pernilongos. Eu vou acender uma folha de
jornal e passar pelas paredes. É assim que os favelados
[65] matam mosquitos.
13 de MAIO. Hoje amanheceu chovendo. É um dia
simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos. Nas prisões
[70] os negros eram os bodes expiatorios. Mas os brancos
agora são mais cultos. E não nos trata com desprezo.
Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam
feliz. (...) Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal.
A chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos
[75] para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva
para mim ir lá no Senhor Manuel vender os ferros. Com
o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A
chuva passou um pouco. Vou sair. (...) Eu tenho dó dos
meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles
[80] brada: Viva a mamãe!. A manifestação agrada-me. Mas
eu já perdi o habito de sorrir. Dez minutos depois eles
querem mais comida. Eu mandei o João pedir um
pouquinho de gordura a Dona Ida. Mandei-lhe um bilhete
assim:
[85] “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouquinho de
gordura, para eu fazer sopa para os meninos. Hoje
choveu e não pude catar papel. Agradeço. Carolina”
(...) Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no
inverno a gente come mais. A Vera começou a pedir
[90] comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu
estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco
de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de
banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9
horas da noite quando comemos.
[95] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravatura atual – a fome!
(DE JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo.)
Diário é um gênero textual no qual são registrados acontecimentos cotidianos com base em uma perspectiva pessoal. A partir dessa definição é correto afirmar que, no texto,