TEXTO:
O Princípio da Universalidade na Medicina
A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
Houve tempo no qual a medicina se devotava ou se
restringia a determinadas classes ou grupos da
sociedade.
Na antiga medicina hindu, representada
[5] pelo ayurveda, o médico estava acima de tudo em busca
de sua evolução pessoal. Para promover sua ascese,
dentro do sistema de castas da antiguidade oriental,
deveria o médico evitar o contato com a classe dos párias
ou Shudras. Posteriormente, com o budismo, o médico
[10] tornou-se apto a entrar em contato próximo com todas
as classes e castas.
No século XX, em modelos repletos de crueldade,
outros exemplos de acepção entre pessoas foram
observados na medicina nazista e na comunista. Os
[15] nazistas comprometiam-se com determinada raça,
embora o próprio conceito de raça tenha sido questionado
por alguns à época. Já os comunistas, no próprio
juramento, colocam a revolução acima da vida humana,
priorizando a classe que o regime totalitário priorizava.
[20] A concepção atual de nossa civilização acerca do
que é a boa medicina tem suas raízes na antiquíssima
tradição hipocrática e em seu desenvolvimento ao longo
dos séculos, passando pela concepção cristã.
No Juramento Hipocrático, o médico se
[25] comprometia a tratar com dignidade igual pessoas de
ambos os sexos, livres ou escravos, uma vez que
adentrava o lar alheio para exercer sua profissão:
[...] em quantas casas eu entrar, entrarei para
benefício dos que sofrem, evitando toda injustiça
[30] voluntária e outra forma de corrupção, e também atos
libidinosos no corpo de mulheres e homens, livres ou
escravos.
Com o advento do cristianismo, as características
da fé emergente reforçaram a ideia de igual dignidade
[35] entre humanos, dando alcance universal às tradições
judaicas e acatando os ideais essenciais da medicina
hipocrática.
Hoje, quando falamos de Direitos Humanos
Universais, é inegável que a raíz da dignidade comum
[40] do ser humano está ligada à antiga percepção de que
no ser humano há algo de divino e de transcendental,
seja da escola pitagórica — segundo alguns, precursora
religiosa do hipocratismo médico —, seja do judaísmo,
ao anunciar que o homem foi feito à imagem e
[45] semelhança do próprio Deus.
Essa concepção de dignidade universal do ser
humano alia-se à percepção de que cada vida humana é
especial per se, repetida na concepção kantiana de que
cada ser humano deve ser tratado como um fim em si
[50] mesmo.
Diante de tal nobre e elevada concepção do ser
humano, a ideia mais perigosa que hoje ameaça a
medicina é a de que seres humanos nada têm de
especial.
[55] Diante dessa tradição de respeito ao valor e à
dignidade da vida humana, podemos interpretar melhor
esse que é o primeiro princípio do Código de Ética
Médica, assim como podemos apreender as implicações
do Código como um todo quando se dedica o ato médico
[60] ao ser humano e à coletividade sem discriminação de
nenhuma natureza.
Quanto à definição de saúde propalada pela
Organização Mundial da Saúde — talvez a mais citada e
acatada —, guarda forte elemento de utopia, sem dúvida,
[65] mas tem seu mérito ao lembrar que a saúde está ligada
às partes física, mental e social do ser humano. Carece
de precisão ao utilizar o termo “completo bem-estar” e
mostra-se incompleta ao não incluir diretamente o
aspecto espiritual ou transcendente do ser humano.
[70] Porém, é difícil imaginar definição incontestável de saúde.
Daí a importância em estabelecer princípios de ação
geral e fundamentá-los na experiência comum de nossa
civilização, incluindo suas raízes religiosas ou seculares
e seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Nesse
[75] panorama imenso, os assustadores exemplos da
subversão de tais ideais nos mostram as consequências
de esquecer a vocação universalista da medicina e o
local especial ocupado pelo ser humano na prática
médica.
ANGOTTI NETO, Hélio. O princípio da universalidade na medicina. Disponível em: https://academiamedica.com.br/author/helioangotti/>. Acesso em: 26 out. 2016.
O texto, em sua totalidade, dá ênfase, sobretudo, à necessidade de