Um dos grandes escritores de sempre, tão pouco conhecido em Portugal, é o inglês Charles Dickens. Uma das suas páginas, de que me lembrei agora e é das mais comoventes que alguma vez li, fala de um filho que vai visitar a mãe, muito doente, ao hospital. De pé junto à sua cama pergunta-lhe
– Sentes dores, mãe?
e ela responde
– Tenho a impressão que há uma dor aqui no quarto mas não tenho a certeza de que sou eu que a sinto
e este extraordinário diálogo é profundamente verdadeiro. Quando estava internado no Hospital de Santa Maria, a sofrer com o cancro do cólon, era exatamente isto que eu estava a sentir. Havia uma dor intensa ali no quarto mas não sabia se era minha. Umas vezes parecia-me que sim, outras que não e estava para ali como um pobre boneco articulado, a tentar entender. Havia ocasiões em que me sentia ser eu, outras em que me sentia uma coisa vaga e, por estranho que pareça, o sofrimento era-me, às vezes, quase indiferente. Não possuía a consciência de ser uma pessoa, achava-me uma coisa vaga a flutuar sem destino, olhando vagamente a janela numa indiferença opaca, consciente da miséria do meu pobre corpo imóvel, tão longe de mim, tão longe dos outros, quase não respondendo aos médicos porque mal os ouvia e, estranhamente, sem nada a lamentar. Não me queixava: parecia-me incompreensível e ao mesmo tempo alheio a mim. As enfermeiras manejavam-me como um boneco, punham-me fraldas, tiravam-me fraldas, mudavam-me a algália, mudavam-me os soros e eu calado a vê-las sem as olhar, distante, indiferente, não triste sequer, não desesperado, ausente apenas. Durante a noite, sem dormir, olhava vagamente a janela e o vazio atrás dos vidros, tomava os comprimidos, não falava nunca. Aliás falar era difícil, articular palavras, fossem elas quais fossem, uma quase impossibilidade, não sentia medo nem esperança: não sentia nada, como não esperava nada nem desejava nada. E havia de facto uma dor ali no quarto, mas a quem pertencia?
ANTUNES, A. L. Disponível em: http://visao.sapo.pt/opiniao. Acesso em: 01 mar. 2019.
No texto, de autoria de um célebre escritor e médico português contemporâneo, a dor