Leia o seguinte trecho do romance Lucíola, de José de Alencar, para a questão.
Capítulo V
As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais. É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito, insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota de fel ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados.
Foi o que me sucedeu; e não sei se no dia seguinte trocaria a voluptuosidade lenta e infinita de minhas recordações ainda recentes por outra hora da febre ardente que na véspera me prostrara nos braços de Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos os meus desejos, que eu supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos da presa em que uma vez se tinham cevado.
[...]
Vi Lúcia sentada na frente do seu camarote, vestida com certa galantaria, mas sem a profusão de adornos e a exuberância de luxo que ostentam de ordinário as cortesãs, ou porque acreditem que a sua beleza, como as caixinhas de amêndoas, cota-se pelo invólucro dourado, ou porque no seu orgulho de anjos decaídos desejem esmagar a casta simplicidade da mulher honesta, quantas vezes defraudada nessa prodigalidade.
Não me posso agora recordar das minúcias do traje de Lúcia naquela noite. O que ainda vejo neste momento, se fecho os olhos, são as nuvens brancas e nítidas, que se frocavam graciosamente, aflando com o lento movimento de seu leque; o mesmo leque de penas que eu apanhara, e que de longe parecia uma grande borboleta rubra pairando no cálice das magnólias. O rosto suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas.
A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase tímida, e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir pensamentos calmos, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido e acerado rasgava os véus ligeiros e desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios. As sensações amortecidas se encarnavam de novo e pulsavam com uma veemência extraordinária. Eu sofria a atração irresistível do gozo fruído, que provoca o desejo até a consunção; e conheci que essa mulher ia se tornar uma necessidade, embora momentânea, da minha vida.
– É uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um ar de indiferença para disfarçar a minha emoção.
– A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a mais caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende.
– Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que é uma boa moça, muito amável...
– Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante quatro meses.
– E por que a deixou? Aborreceu-se?
– Não a deixei. É seu costume; um belo dia, sem causa, sem o mínimo pretexto, declara a um homem que as suas relações estão acabadas; e não há que fazer. Podem oferecer-lhe somas loucas, é tempo perdido. Também no dia seguinte, ou no mesmo, daí a uma hora, toma outro amante que não conhece, que nunca viu.
– Todas são assim, com pouca diferença; ninguém sabe qual é o fio que faz dançar essas bonecas de papelão.
– Nem tanto. Há mulheres, que, ou por interesse, ou por amizade, ou mesmo por hábito, se inquietam com a ideia de que seu amante as abandone; mas para esta é absolutamente indiferente. Tem dias em que está de um humor insuportável: fica uma estátua, e não há forças humanas que possam arrancar daquela massa inerte um sorriso, uma palavra, um movimento. Se o homem não possui grande dose de paciência para sofrê-la calado, ela fecha-lhe a porta muito delicadamente, e manda-lhe dizer pela criada – “que tenha a bondade de deixá-la tranquila para todo o sempre”. – E uma vez dito, não volta.
– Para quem tem direitos adquiridos, pareceme um tanto forte!
– É o seu engano, continuou o Cunha que estava de veia. A Lúcia não admite que ninguém adquira direitos sobre ela. Façam-lhe as propostas mais brilhantes: sua casa é sua e somente sua; ela o recebe, sempre como hóspede; como dono, nunca. Na ocasião em que o senhor a toma por amante, ela previne-o de que reserva-se plena liberdade de fazer o que quiser e de deixá-lo quando lhe aprouver, sem explicações e sem pretextos, o que sucede invariavelmente antes de seis meses; está entendido que lhe concede o mesmo direito.
[...]
ALENCAR, José de. Lucíola. 16. ed. São Paulo: Ática, 1992, p. 27.
“As grandes sensações 1de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, 2que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais. É 3depois que passa esse entorpecimento das faculdades, 4que o espírito, 5insigne químico, decompõe 6a miríada de sensações, e vai 7sugando a gota 8de fel ou de essência 9que ainda estila 10dos favos apenas libados.”
Identifique se é verdadeira ou falsa a descrição abaixo da estrutura semântica e/ou morfossintática de cada um dos trechos acima enumerados e sublinhados.
1 é expressão determinante de “sensações”, com função de adjunto adnominal.
2 exerce função consecutiva do ‘peso’ das “sensações”.
3 exerce função predicativa circunstancial de tempo.
4 é conjunção integrante que inicia uma oração subordinada substantiva subjetiva.
5 é uma expressão apositiva, metalinguística.
6 realça a quantidade imensa e indeterminada das “sensações” e é objeto da ação de decompor.
7 é ação iniciada mas não terminada e parte principal da locução verbal.
8 estabelece relação entre dois códigos, sendo que o sucedente é conteúdo do antecedente.
9 exerce função de pronome substantivo substitutivo da palavra “essência”.
10 é contração de preposição com palavra definidora de gênero, estabelecendo relação de origem.
A soma dos números dos trechos descritos de forma correta é: