Um diário do ano da peste
Naquele tempo, conforme aumentava a devastação, também crescia o pavor das pessoas, que faziam mil coisas indescritíveis, movidas pela fúria de seu medo, enquanto outras faziam o mesmo na agonia da doença. Isso foi muito impressionante. Alguns saíam pelas ruas gemendo, chorando e contorcendo as mãos. Outros rezavam erguendo as mãos ao Céu, pedindo misericórdia a Deus. Na verdade, não sei dizer se faziam isso por loucura, mas quando agiam com consciência era indicação de uma mente mais séria, e rezar, fosse como fosse, era muito melhor do que os berros e gemidos que, todos os dias, principalmente ao anoitecer, escutavam-se pelas ruas. Suponho que o mundo já ouviu falar no famoso Solomon Eagle, um entusiasta. Embora não estivesse de forma alguma contaminado, a não ser na sua cabeça, ele saía por aí, denunciando o castigo imposto à cidade de uma maneira aterradora, às vezes completamente nu, com uma panela de carvão em brasa na cabeça. O que dizia ou fingia dizer nunca consegui realmente entender.
Não sei se aquele pregador era um alienado ou se fazia isso por pura preocupação com os pobres. Saía todas as noites pelas ruas de Whitechapel, repetindo continuamente, com as mãos para o alto, esta passagem da liturgia da Igreja: "Salvai-nos, bom Deus! Salvai Vosso povo, a quem redimistes com Vosso mais precioso sangue". Não posso falar com certeza sobre essas coisas, pois estes foram apenas exemplos pungentes que se apresentaram quando olhava pelas janelas do meu quarto (já que raramente abri as venezianas) enquanto me confinei dentro de casa, durante o ataque mais violento da pestilência. [...].
Uma pobre e infeliz senhora, esposa de um cidadão de prestígio, foi (se a história for verdadeira) assassinada por uma destas criaturas em Aldersgate Street ou naquele caminho. Ele vinha esbravejando e cantando completamente louco pela rua. O povo disse que ele estava só bêbado, mas ele mesmo disse que estava com a peste, o que parecia ser verdade. Ao encontrar-se com a senhora, quis beijá-la. Ela ficou aterrorizada de medo, pois ele era um sujeito rude, e fugiu dele, mas a rua tinha poucos moradores e não surgiu ninguém por perto para ajudá-la. Quando viu que ele a alcançaria, ela virou-se e empurrou-o com tanta força que ele, estando fraco, caiu de costas no chão. Muito infelizmente, porém, ela estava tão perto que, depois de se levantar, ele dominou-a e beijou-a. O pior de tudo foi depois de dar o beijo, quando ele disse a ela que estava com a peste, e perguntou por que ela não deveria sofrer tanto quanto ele. Ela, sendo jovem e com um filho, já se apavorara antes, mas ao ouvi-lo dizer que tinha a peste, gritou e caiu no chão num desmaio ou mal-estar. Depois, recuperou-se um pouco, mesmo que aquilo a tenha matado em poucos dias. Nunca soube se ela já estava com a peste ou não.
(Daniel Defoe. Um diário do ano da peste. Trad. Eduardo San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2014, pp. 121-122 e 183).
Daniel Defoe, ao compor a cena de desespero coletivo dos habitantes de Londres durante a peste de 1665, focaliza em especial uma figura da época, Solomon Eagle (1618-1683), um membro da facção religiosa dos quakers a quem Defoe chama de "entusiasta".
Na cena retratada, o próprio autor põe em xeque as motivações da conduta do personagem, caracterizando-o como indivíduo