Mudança é evolução?
Aqueles que são mais desligados, ou apenas mais otimistas, continuam falando da evolução do homem
e acreditando nela. Apresentam em defesa de sua tese fatos aparentemente irrefutáveis, como uma
eventual menor agressividade entre os homens, ou o aumento do conhecimento e dos seus resultados,
em especial aqueles que decorrem da tecnologia derivada das descobertas científicas. Assim, podem eles
[05] dizer que a humanidade evoluiu porque conhece mais do que conhecia (explica o trovão em vez de ter
medo dele ou de atribuí-lo a um deus) e porque se pode ir do Brasil à Europa num ______ de dez horas em
vez de ter que arriscar a vida em pequenos navios durante cinco ou seis semanas. Costuma-se também
fazer comparações com outros povos, ditos primitivos, ou com os povos hoje evoluídos em relação ______
quando estavam em estágios anteriores. Por exemplo, em relação à expectativa de vida, que aumentou
[10] enormemente. A humanidade apresentaria, assim, uma espécie de evolução. Eventualmente, evoluiríamos
ainda mais, tendo chegado, quem sabe, a hora de evoluir o espírito... Esse tipo de análise esteve muito em
voga no século passado, popularizou-se depois de Darwin, mas não se deve só a ele. Aliás, o evolucionismo
darwiniano não tem nada a ver com “evolução”, no sentido de avanço, melhoria, mas com a sobrevivência
dos mais aptos.
[15] A chamada linguística histórica embarcou nessa tese durante certo tempo, até dar-se conta de que é
muito difícil mantê-la diante dos fatos: se é verdade que as línguas evoluem, como é que elas ficam quando
estão no auge: como o grego e o latim, cheias de flexões, ou como o inglês, com pouquíssimas? Sendo
impossível tomar decisões razoáveis diante de dilemas como este, a linguística decidiu mudar de rumo.
Passou a falar em mudança ou, no máximo, em deriva, não mais em evolução. Segundo esse modo de ver
[20 as coisas, o que se pode dizer é que as línguas mudam, mas isso não implica que elas melhorem nem que
piorem. Apenas ficam diferentes.
A ideia de deriva tem uma particularidade: segundo esse ponto de vista, também não se diz que as
línguas melhoram ou pioram. Mas afirma-se algo mais que a simples mudança. Afirma-se que esta tem
uma direção, que é de certa maneira predeterminada. Em outras palavras, para cada língua, ou família de
[25] línguas, há certos tipos de mudança que podem ocorrer e outros que não podem. Não se pode prever com
certeza que alguma mudança vai ocorrer, mas se pode prever que algumas nunca ocorrerão.
Por exemplo: no português atual, há variação de pronúncia dos sons ou da sequência de sons envolvidos
naquilo que se escreve com “lh + vogal” ou “li + vogal”. Assim, palavras como “mulher” ou “pilha”, por um
lado, e “família”, por outro, estão sendo pronunciadas variavelmente como “mulher” e “muié”, “pilha” e “pia”,
[30] “família” e “famía”. Ora, em francês há (ou melhor, houve) um fenômeno semelhante. Por isso, em palavras
que se escrevem com “lh” ou com “lli” não é pronunciado nenhum som que seja representado por “lh” ou
“ll”. “Malhereux” pronuncia-se “maierõ” (o que interessa aqui é “ie”) e a pronúncia do nome do famoso
Champollion é “champoiõ” (o que interessa é “iõ”).
Em espanhol, existem palavras como “noche” e “ocho”, que correspondem a “noite” e “oito” do português.
[35] Em algumas regiões do Brasil, já se ouvem pronúncias como “noitche” e “oitcho” (como atestam personagens
que conhecemos na televisão, em novelas ou programas de humor, até dizendo exageradamente “eu
gostcho”). Pode ser, pois, que o português venha a ter como formas exclusivas aquelas que hoje são
variedades populares (como “famía” e “oitcho”). Talvez mudanças como estas estejam comuns a diversas
línguas do mesmo tronco. Afinal, se em francês e espanhol essas pronúncias são elegantes, ______
[40] nós não viríamos a gostar delas dentro de um certo tempo? Mudança? Sim. Deriva? Talvez. Evolução?
Certamente, não.
Essa lição dos linguistas a respeito do pouco sentido que faz falar em evolução pode ser instrutiva para
pensar a história. Talvez seja verdade que não evoluímos, apenas mudamos. Afinal, é duvidoso que seja
mais civilizado (ou evoluído) fazer guerras com bombas atômicas do que com tacapes e flechas. E, sendo
[45] pessimistas (ou realistas, nunca sei), talvez ______ “deriva” da humanidade nos permita prever que nunca
assistiremos a fenômenos sociais que seriam teoricamente possíveis.
POSSENTI, Sírio. Mudança é evolução? In: ______. A cor da língua e outras croniquinhas de linguista. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.
Conforme o texto, é correto afirmar que o operador argumentativo