Texto
O tempo amarrota a lembrança e subverte a ordem.
Parecia muito pequeno o ideal de meu pai, naquele tempo, lá. A escola, onde me matriculou
também na caixa escolar – para ter direito a uniforme e merenda –, devia me ensinar a ler, escrever
e a fazer conta de cabeça. O resto, dizia ele, é só ter gratidão, e isso se aprende copiando exemplos.
[5] Difícil não conferir razão a meu pai em seus momentos de anjo. Ele pendia a cabeça para a esquerda,
como se escutando o coração, e falava sem labirintos. Dizia frases claras, acordando sorrisos
e caminhos. Parecia querer argumentar sem ele mesmo ter certeza, tornando assim as palavras
cuidadosas.
Um pesar estrangeiro andou atordoando meu pouco entendimento. Ir para a escola era abandonar as
[10] brincadeiras sob a sombra antiga da mangueira; era renunciar o debaixo da mesa resmungando mentiras
com o silêncio; era não mais vistoriar o atrás da casa buscando novas surpresas e outros convites.
Contrapondo-se a essas perdas, havia a vontade de desamarrar os nós, entrar em acordo com o
desconhecido, abrir o caderno limpo e batizar as folhas com a sabedoria da professora, diminuir o
tamanho do mistério, abrir portas para receber novas lições, destramelar1 as janelas e espiar mais
[15] longe. Tudo isso me encantava.
Por definição minha, perseguindo respostas, eu desconfiava ser a escola um lugar de muito
respeito. Era preciso ter as unhas limpas e aparadas, cabelo penteado, caderno caprichado dentro
do embornal2, uniforme lavado – calça azul-marinho e camisa de fustão branco – e passado com
ferro de brasa, goma de polvilho rala na gola, para não arranhar o pescoço.
[20] A professora, quando os alunos ainda na fila e do lado de fora da sala, lia a gente como se fosse um livro.
E mãe nenhuma gostaria de ser chamada de desmazelada pela mulher mais respeitada do lugar. (...)
Eu carregava comigo um chocalho de cascavel amarrado em um cordão encardido, preso no
pescoço. Simpatia de minha mãe para eu não urinar na cama. A gola engomada de minha camisa
não escondia essa sentença peçonhenta3. Eu vivia como a canção: “camisa aberta ao peito, pés
[25] descalços e braços nus”. (...)
Eu corria pelos matos cheio de carrapichos e carrapatos, saltando córrego, me equilibrando em
pinguelas, descobrindo frutas maduras, suspeitando ninhos e passarinhos. Trazia, ainda, uma
vergonha de todo mundo, mas deixar sumir na “campina” o chocalho, simpatia de mãe, seria brincar
com sua fé. Então eu andava devagarinho, pisando certo, aprumado e manso, para evitar o chique
[30] chique do chocalho. Cascavel anda em dupla, me diziam, e o chocalho serve para chamar o outro.
(...)
Vi meu pai cochichar com minha mãe, e de início enredei ser carinho, como o de Dr. Júlio Leitão e
Dona Pequenina. Abri bem os ouvidos, pois os olhos não dava. Ele dizia ser o Dr. Jair, seu patrão,
como uma cobra: mordia e soprava. Eu balançava a cabeça, com força, de vez em quando, acordando
a simpatia de minha mãe. Vontade de chamar outra cascavel só para ver uma cobra mordendo e
[35] soprando, se frio ou quente seu bafo.
Dr. Jair visitou minha mãe, uma noite (...). Não saí de perto dele nem tirei os olhos de sua boca,
esperando o homem morder e soprar. Ele falou foi muito de riqueza e de como contava com o
trabalho de meu pai, seu melhor empregado, capaz de carregar água em peneira. Perdi meu tempo.
BARTOLOMEU CAMPOS QUEIRÓS Ler, escrever e fazer conta de cabeça. São Paulo: Global, 2004.
1 destramelar: destrancar 2 embornal: sacola 3 peçonhenta: venenosa
O tempo amarrota a lembrança e subverte a ordem. (l. 1)
Considere o conteúdo da frase acima, que aponta a interferência da passagem do tempo na narrativa de memórias.
Em virtude dessa interferência, a exposição de lembranças se distancia da seguinte característica: