A pátria de ponteiros
[1] Numa demonstração de abertura e inequívoca coragem, Fritz pediu uma feijoada. Eu comentei que, aparentemente,
ele não estava tendo dificuldades de adaptação. O alemão disse que não. Por conta do seu trabalho – instala e
conserta máquinas de tomografia computadorizada–, viajava o mundo todo. A única coisa que lhe incomodava, no
Brasil, era nunca saber quando as pessoas chegariam aos encontros. O problema era menoso atraso, confessou, do
[5] que nossa dificuldade em admiti-lo: "O pessoa manda mensagem, diz 'tô chegando!', eu levanta do minha cadeirrra e
olha prrro porrrta da restaurrrante, mas pessoa chega só quarrrenta minutos depois". Então me fez a pergunta que
só poderia vir de um compatriota de Imanuel Kant: "'Quando a brrrasileirrro diz tô chegando!', em quanto tempo
brrrrasileirrro chega?".
Pensei em mentir, em dizer que uns atrasam, mas outros aparecem rapidinho. Achei, porém, que em nome de nossa
[10] dignidade – ali, naquela mesa, eu era a "pátria de ponteiros" – o melhor seria falar a verdade: "Fritz, é assim:
quando o brasileiro diz 'tô chegando!' é porque, na real, ele tá saindo". Tentei atenuar o assombro do alemão: veja,
não é exatamente mentira, afinal, ao pôr o pé pra fora de casa dá-se início ao processo de chegada, assim como ao
sair do útero se começa a caminhar para a cova. É só uma questão de perspectiva.
"Mas e quando o pessoa diz 'tô saindo!'?" Expliquei que as declarações do brasileiro, no que tange ao atraso, estão
[15] sempre uma etapa à frente da realidade – são uma manifestação do seu desejo. Se a pessoa diz que está chegando, é
porque tá saindo, e se diz que tá saindo, é porque ainda precisa tomar banho, tirar a roupa da máquina e botar
comida pro cachorro.
Fritz ficou pensativo. Uma morena entrou no bar e percebi certa reverberação nos hormônios teutões. Era a chance
de mudar de assunto, mas eu havia sido mordido pela mosca da sinceridade e resolvi ir até o fim: revelei que, além
[20] do "tô chegando!" e do "tô saindo!", ele teria de aprender a lidar com "chego em 15!" e "cinco minutinhos!".
"Chego em 15!" é sinônimo de "tô chegando!": quer dizer que o patrício está saindo. Quinze minutos é o tempo
mágico que o brasileiro acredita gastar em qualquer percurso – a despeito da experiência, da Sulamérica trânsito e
do Waze. Da Mooca pra USP? "Chego em 15!" De Santo Amaro pra Cantareira? "Quinze!" Mais uma vez, não é
propriamente mentira. Se pegássemos todos os faróis abertos e todos os carros saíssem da nossa frente, em tese, vai
[25] que...?
Já o "cinco minutinhos!" é um pouco mais vago. Pode significar tanto que o brasileiro está a cem metros do destino
quanto a 27 quilômetros. Às vezes, cinco minutinhos demoram muito mais do que quinze, mais do que uma hora: há
casos, até, menos raros do que se imagina, em que a pessoa a cinco minutinhos jamais aparece.
Fritz ficou olhando o chope, contemplativo, imaginando, talvez, na espuma branca, a tomografia multicolor desses
[30] cérebros tropicais. Senti que, agora sim, era o momento de mudar de assunto, de mostrar ressonâncias, digamos,
mais magnéticas do nosso país. Chamei o garçom. "Chefe, a gente pediu uma feijoada, já faz um tempinho..." "Tá
chegando, amigo, tá chegando!"
(Antônio Prata, Folha de S. Paulo, 23/02/2014)
Como é típico da crônica jornalística, Antônio Prata aborda assuntos do cotidiano com leveza e humor. Dentre os expedientes usados pelo autor para obter efeitos cômicos, só NÃO se constata a presença de