IFSudMinas 2018/2
45 Questões
Leia o texto a seguir:
TEXTO
Começou, ele disse
Acordou com o primeiro tiro sem saber por que tinha acordado. Trazia porém do sono um
aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília,
olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na
cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim
[5] quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez
houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se
então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no
travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir
[10] a colcha. Mesmo assim não se mexeu.
Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós,
pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais
importante do que a ordem das palavras.
Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão
[15] continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto
acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma
posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente
acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto
[20] adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios
estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não
imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos.
E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido
rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo
[25] que caiu.
A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse a mulher. E ele então mexeu-se
porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro.
Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam
estar vindo da praça, ou de outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam
[30] agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam
ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e
medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou
que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que
[35] mesmo assim não chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você
está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele
prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos
debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima
certeza, o que estava se passando.
[40] Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente
defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr
entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que
tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada
do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do
[45] sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor.
Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido,
meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de
armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha
ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
[50] A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes
responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava.
Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia
seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada
iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo
[55] ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de
muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de
costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se.
Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse
em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu
[60] deus uma guerra.
Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma
notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na
madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura,
quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se
[65] ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os
mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e
deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou
à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda
[70] teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para
dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e
teve vontade de chorar.
COLASANTI, Marina. Começou, ele disse. Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2018.
Considerando o texto lido, assinale a alternativa CORRETA:
Leia o texto a seguir:
TEXTO
Começou, ele disse
Acordou com o primeiro tiro sem saber por que tinha acordado. Trazia porém do sono um
aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília,
olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na
cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim
[5] quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez
houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se
então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no
travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir
[10] a colcha. Mesmo assim não se mexeu.
Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós,
pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais
importante do que a ordem das palavras.
Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão
[15] continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto
acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma
posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente
acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto
[20] adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios
estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não
imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos.
E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido
rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo
[25] que caiu.
A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse a mulher. E ele então mexeu-se
porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro.
Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam
estar vindo da praça, ou de outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam
[30] agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam
ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e
medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou
que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que
[35] mesmo assim não chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você
está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele
prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos
debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima
certeza, o que estava se passando.
[40] Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente
defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr
entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que
tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada
do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do
[45] sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor.
Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido,
meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de
armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha
ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
[50] A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes
responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava.
Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia
seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada
iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo
[55] ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de
muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de
costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se.
Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse
em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu
[60] deus uma guerra.
Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma
notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na
madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura,
quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se
[65] ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os
mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e
deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou
à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda
[70] teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para
dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e
teve vontade de chorar.
COLASANTI, Marina. Começou, ele disse. Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2018.
Acerca da construção do texto, analise as afirmativas a seguir:
I. O narrador pode ser classificado como narrador observador, uma vez que conta os fatos como uma testemunha, sem demonstrar conhecer a fundo o que se passa com os personagens.
II. O conto está organizado de forma a evidenciar a tensão vivida pelos dois personagens, o que se pode observar, por exemplo, pela ausência de sinais de pontuação para demarcar a fala de cada um em alguns fragmentos.
III. A não nomeação dos personagens pode ser interpretada como um recurso narrativo que objetiva mostrar a desconexão entre os que estão protegidos em seus lares e aqueles que vivenciam a guerra noturna.
IV. A narrativa ressalta a impotência experienciada pelos personagens, como se verifica no ato de a mulher calar as próprias perguntas para responder apenas que já era tarde.
Assinale a alternativa CORRETA.
Leia o texto a seguir:
TEXTO
Começou, ele disse
Acordou com o primeiro tiro sem saber por que tinha acordado. Trazia porém do sono um
aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília,
olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na
cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim
[5] quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez
houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se
então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no
travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir
[10] a colcha. Mesmo assim não se mexeu.
Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós,
pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais
importante do que a ordem das palavras.
Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão
[15] continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto
acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma
posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente
acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto
[20] adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios
estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não
imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos.
E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido
rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo
[25] que caiu.
A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse a mulher. E ele então mexeu-se
porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro.
Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam
estar vindo da praça, ou de outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam
[30] agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam
ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e
medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou
que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que
[35] mesmo assim não chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você
está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele
prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos
debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima
certeza, o que estava se passando.
[40] Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente
defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr
entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que
tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada
do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do
[45] sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor.
Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido,
meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de
armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha
ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
[50] A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes
responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava.
Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia
seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada
iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo
[55] ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de
muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de
costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se.
Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse
em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu
[60] deus uma guerra.
Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma
notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na
madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura,
quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se
[65] ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os
mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e
deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou
à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda
[70] teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para
dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e
teve vontade de chorar.
COLASANTI, Marina. Começou, ele disse. Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2018.
Releia o fragmento que se segue: “É tarde, respondeu a mulher só para dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e teve vontade de chorar.” (linha 70-72).
Considerando o texto como um todo, a repetição da resposta dada pela mulher ao final do texto pode ser interpretada como:
Leia o texto a seguir:
TEXTO
Começou, ele disse
Acordou com o primeiro tiro sem saber por que tinha acordado. Trazia porém do sono um
aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília,
olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na
cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim
[5] quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez
houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se
então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no
travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir
[10] a colcha. Mesmo assim não se mexeu.
Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós,
pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais
importante do que a ordem das palavras.
Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão
[15] continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto
acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma
posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente
acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto
[20] adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios
estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não
imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos.
E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido
rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo
[25] que caiu.
A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse a mulher. E ele então mexeu-se
porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro.
Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam
estar vindo da praça, ou de outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam
[30] agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam
ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e
medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou
que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que
[35] mesmo assim não chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você
está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele
prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos
debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima
certeza, o que estava se passando.
[40] Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente
defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr
entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que
tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada
do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do
[45] sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor.
Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido,
meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de
armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha
ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
[50] A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes
responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava.
Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia
seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada
iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo
[55] ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de
muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de
costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se.
Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse
em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu
[60] deus uma guerra.
Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma
notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na
madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura,
quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se
[65] ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os
mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e
deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou
à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda
[70] teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para
dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e
teve vontade de chorar.
COLASANTI, Marina. Começou, ele disse. Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2018.
Considere o seguinte fragmento: “... dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido.” (linha 32). O conectivo “e”, em negrito, estabelece uma relação semântica de:
Leia o texto a seguir:
TEXTO
Começou, ele disse
Acordou com o primeiro tiro sem saber por que tinha acordado. Trazia porém do sono um
aviso de alarme. Sem se mexer, sem abrir completamente os olhos para não denunciar sua vigília,
olhou em volta pela fresta das pálpebras. Lentamente percorreu as sombras, detendo-se mais na
cadeira, onde as roupas jogadas criavam formas que não lhe eram familiares. Fazia sempre assim
[5] quando acordava de repente no meio da noite e o coração descompassado lhe dizia que talvez
houvesse algum invasor no quarto. E cada vez se detinha na cadeira. Não havia ninguém. Permitiu-se
então abrir os olhos, levantar a cabeça, só pelo prazer de tornar a fechá-los, ajeitando-se no
travesseiro. O segundo tiro estalou seco na rua.
O som colheu-o no estômago, na cabeça, na pele. E com a pele pareceu eriçar os lençóis, ferir
[10] a colcha. Mesmo assim não se mexeu.
Um tiro que assalta nosso sono sempre atinge o alvo, ainda que o alvo não sejamos nós,
pensou surpreendendo-se com a nitidez do pensamento. Sentia-se atingido, a sensação tão mais
importante do que a ordem das palavras.
Esperou um instante para ver se a mulher a seu lado na cama se mexia. Mas o colchão
[15] continuou imóvel como se vazio. Melhor assim, ela era muito impressionável, se acordasse o assunto
acabaria se estendendo no dia seguinte tornando-se difícil de apagar. Ele próprio continuou na mesma
posição. Tentou ouvir a respiração dela. Antes que o conseguisse, adormeceu.
Talvez tivesse apenas cochilado, questão de minutos, porque logo estava novamente
acordado, olhos bem abertos, nenhum descompasso, e a certeza de saber quem lhe entrava quarto
[20] adentro. Dessa vez não era um tiro. Rajadas de metralhadora pareciam ricochetear entre os prédios
estremecendo os vidros da janela. Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não
imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue. As rajadas seguiam-se a intervalos pequenos.
E a cada brecha de silêncio ele desejava que fosse a última, fechando a noite onde ela havia sido
rasgada, restaurando integridade da escuridão como o lago restaura sua superfície encobrindo o corpo
[25] que caiu.
A primeira granada estourou altíssima. Começou, disse a mulher. E ele então mexeu-se
porque já não era necessário cuidar do sono dela. Começou, respondeu. Continuaram no escuro.
Da rua — mas seria mesmo daquela rua?, os sons se alastravam com tal rapidez que poderiam
estar vindo da praça, ou de outra rua —, de onde quer que fosse, ali embaixo ou ali perto, chegavam
[30] agora tiros de revólver. E gritos. Eram ordens gritadas, iradas, esparsas. Será que não acertam
ninguém, perguntou-se ele calado, porque nenhum grito de dor ou de medo lhe chegava e a dor e
medo pareciam ser só dele, dele que ali deitado não era a caça de ninguém e se sentia ferido. Desejou
que se matassem, que se rasgassem, que se largassem aos pedaços pelo chão.
Levantou-se. Não vai, disse a mulher, embora sabendo que ele só iria até a janela e que
[35] mesmo assim não chegaria perto dos vidros, protegendo-se atrás da quina de cimento. Não vai, você
está louco, uma bala perdida te acerta. Nessa altura não chega, disse ele certo que no alto daquele
prédio alto nenhuma bala viria se perder, e ainda assim não ousando aproximar-se nem muito menos
debruçar o corpo e esticar o pescoço para vasculhar, vasculhar o escuro e saber, com alguma mínima
certeza, o que estava se passando.
[40] Entre vidro e cimento olhou para baixo. Acreditou ter visto sombras furtivas. Certamente
defendiam-se atrás dos carros estacionados, protegiam-se nos portões, alguns haveriam de correr
entre um anteparo e outro, armas nas mãos. Estão lá embaixo, disse para a mulher. Mas sabia que
tinha visto o que queria ver, talvez não houvesse ninguém naquele rio negro que era a rua visualizada
do alto e ainda por cima encoberta pelas copas das árvores, talvez estivessem mais para lá, além do
[45] sinal luminoso que alheio como um farol continuava a trocar de cor.
Uma explosão. E quase em cima daquela, outra. Mais fortes, dessa vez. Recuou rápido,
meteu-se na cama. Estão usando armamento pesado, disse a mulher como se entendesse de
armamento. E ele respondeu, talvez sejam granadas, sabendo muito bem que nunca antes tinha
ouvido uma explosão de granada e que não saberia distingui-la de qualquer outra explosão.
[50] A fuzilaria pipocou, as balas pareciam ferir chapas de metal. Ao longe, sons semelhantes
responderam. Depois explosões em série, um estrondo. E o silêncio. Nenhum carro passava.
Eles não encontravam nada para dizer. Pensavam que deveriam tentar dormir porque no dia
seguinte, mas como? e se deixavam ficar, tomados por aquele medo que não era medo porque nada
iria lhes acontecer mas que era medo porque tudo estava lhes acontecendo. Durante longo tempo
[55] ouviram o tiroteio intenso que ora se aproximava, ora parecia afastar-se, quase ocorresse atrás de
muros. Aquilo não tinha fim. Como uma guerra, pensou ele encolhendo as pernas sobre o peito, de
costas para a mulher. As rajadas multiplicavam-se em ecos, silenciavam de repente, sobrepunham-se.
Sentiu um desespero sem conserto apertar-lhe a boca, azedar-lhe a saliva. Como uma guerra, disse
em voz alta. E ela não respondeu, mas ele teve certeza de que em silêncio repetia, uma guerra meu
[60] deus uma guerra.
Uma guerra da qual amanhã certamente não haveria nenhum vestígio nas ruas, nenhuma
notícia no jornal. Uma guerra em que todos lutavam com o rosto coberto. Chegaria um momento, na
madrugada, quando as pessoas em suas camas estivessem exaustas, olhos ardendo de sono e secura,
quando a batalha lá embaixo estivesse perdida ou gasta, chegaria um momento em que não se
[65] ouviriam mais tiros só cães latindo, e ele se perguntaria, como se perguntava cada vez, onde estão os
mortos, onde, e quantos são, um momento em que afinal esticaria as pernas debaixo do lençol e
deitado sobre as costas se permitiria afinal adormecer.
Olhou o despertador, mas a fluorescência há muito tinha se esvaído. Que hora será? perguntou
à mulher, quando na verdade queria perguntar há quanto tempo estamos aqui e quanto tempo ainda
[70] teremos que ficar ouvindo, ouvindo o esfacelamento da noite. É tarde, respondeu a mulher só para
dar-lhe uma resposta, ela que também tinha perguntas a fazer mas, para quê? E ele pensou é tarde, e
teve vontade de chorar.
COLASANTI, Marina. Começou, ele disse. Disponível em: . Acesso em: 16 mar. 2018.
Observe o seguinte excerto: “Um corte no ar, picotes abrindo superfícies que ele não via, não imaginava, recusando-se ainda a pensar carne e sangue.” (linha 21-22). As figuras de linguagem constituem recursos estilísticos que, entre outras funções, conferem maior expressividade ao texto. Os termos em destaque são um exemplo de:
TEXTO
BALA PERDIDA
Acorda, levanta, vai ganhar a vida...
(Disparos)
...passou tão rápida.
FREIRE, Wilson. Bala perdida. In: FREIRE, Marcelino (org.). Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. 2ª ed. p.74
Em relação ao texto, analise as afirmativas a seguir.
I. Trata-se de um texto do tipo descritivo, pois não há personagens e tampouco espaço delimitado.
II. O autor lança mão do recurso da brevidade como um reforço da rapidez com que se perde a vida para a violência.
III. O uso das reticências sinaliza uma suspensão temporária do fluxo narrativo em decorrência de uma hesitação do narrador.
IV. O uso de parênteses para isolar o substantivo “disparos” é um recurso expressivo que reforça a interrupção brusca da vida.
Assinale a alternativa CORRETA.