UNIFAN 2017/1 Medicina
80 Questões
Leia a letra da música de Luiz Melodia, para a Questão.
Fadas
Devo de ir, fadas
Inseto voa em cego sem direção
Eu bem te vi, nada
Ou fada borboleta, ou fada canção
As ilusões fartas
Da fada com varinha virei condão
Rabo de pipa, olho de vidro
Pra suportar uma costela de Adão
Um toque de sonhar sozinho
Te leva a qualquer direção
De flauta, remo ou moinho
De passo a passo passo...
Disponível em: https://www.letras.mus.br/luiz-melodia/47112/. Acesso em: 13 jun. 2016.
De acordo com Regina Zilberman (1989, p.33), “A possibilidade de a obra se atualizar como resultado de uma leitura é o sistema de que está viva; porém, como as leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária a (sic) sua fixação numa essência sempre igual e alheia ao tempo. Historicidade coincide com atualização, e esta aponta para o indivíduo capaz de efetivá-la: o leitor.”
Acerca da leitura e possíveis atualizações da letra da música Fadas, é verdade que:
1. há um intertexto bíblico com o Gênesis e crenças pagãs.
2. existe antagonismo entre sagrado e profano atribuído à figura da mulher idealizada, pura e inalcansável não recorrente no Simbolismo.
3. o verso “De flauta, remo ou moinho” pressupõe meio, possibilitando remissões intertextuais tanto à ‘barca de caronte’, que leva mortos ao Ades, quanto aos moinhos de vento, em Dom Quixote.
4. a figura feminina está condicionada ao machismo, ao preconceito de gênero, a algo volátil, mutável e disperso, como “fada borboleta”.
5. o eu-lírico demonstra que é forçado a ter para com a mulher uma atitude condescendente e complacente quanto aos seus defeitos, o que é comprovado no verso “rabo de pipa, olho de vidro”.
6. a figura de estilo em “suportar uma costela de adão” é a metonímia.
7. o eu-lírico, ao utilizar as palavras ‘fartas’ e ‘suportar’, revela-se insatifeito com a figura ‘hetero’ de sua relação.
8. o verso “da fada com varinha virei condão” sugere uma relação simbiótica entre homem e mulher.
9. em “De passo a passo passo” o último léxico remete a ideia temporal e seus dois homógrafos/homófonos a ações.
10. O poema em seu todo não é uma referência metalinguística a “fadas”, pois faz alusão a ‘destinos’. A soma dos números das afirmações inteiramente corretas, em relação à letra Fadas é:
Leia o seguinte poema de Cruz e Sousa para a Questão.
Siderações
Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...
Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...
Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...
E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...
CRUZ e SOUSA, João. Siderações. In: Broquéis. Poemas.L&PM Pocket: Porto Alegre, 2011. p.25.
O poema simbolista Siderações, de Cruz e Sousa, assim como outros poemas do poeta brasileiro, expressam, sob as luzes do movimento simbolista europeu, um desapontamento ante o fracasso das ideias desenvolvimentistas e de transformação da sociedade burguesa industrial.
É verdade que a estética simbolista:
1.valoriza o inconsciente e o sonho, o universo onírico, em contraposição ao racionalismo.
2. enfatiza o distanciamento da realidade subjetiva.
3. pressupõe uma síntese entre a percepção dos sentidos e a reflexão intelectual.
4. coloca em realce a valorização dos mistérios da alma e da corporeidade objetiva.
5. utiliza-se, abundantemente, de uma linguagem indireta e denotativa, evidenciando seu caráter metafórico.
6. tem como uma de suas características basilares a utilização do recurso estilístico da musicalidade, visando sensações e ritmos.
7. elege como uma de suas principais figuras de retórica a sinestesia, figura de linguagem que coloca em relevo
a negação da experiência corpórea sensorial.
8. apregoa que a poesia deve sugerir e não descrever, assim como apregoava a estética parnasiana.
9. distancia-se de questões sociais, evidenciando a característica e função da literatura conhecida como a “arte pela arte”.
10. nega o cientificismo, priorizando objetividade e descritivismo.
A diferença entre a soma dos números correspondentes às sentenças acima incorretas e corretas é:
Leia o seguinte poema de Cruz e Sousa para a Questão.
Siderações
Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...
Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...
Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...
E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...
CRUZ e SOUSA, João. Siderações. In: Broquéis. Poemas.L&PM Pocket: Porto Alegre, 2011. p.25.
A partir da apreciação e análise do poema Siderações e do projeto estético simbolista que o caracteriza, é certo que:
1. o título Siderações evidencia a característica terrena, corpórea e objetiva do domínio do homem sobre o espaço sideral.
2. do ponto de vista formal, sua estrutura e composição mais tradicional, exemplificada pelo soneto, estão em consonância com a designação também atribuída ao simbolismo: ‘decadentismo’.
3. as expressões “cristais gelados” e “nuvens brancas” ilustram o que a literatura concebe como “ideias obsessivas” nos textos literários e, no caso do simbolismo e deste poema, fazem menção à ideia reiterada de claridade, brancura, pureza e nebulosidade, conotando interrogações.
4. as palavras “Estrelas”, “Visões”, “Eternidade” e “Astros”, entre outras, grafadas com letras maiúsculas iniciais, no início, meio e fim do poema oferecem a lacuna a ser preenchida pelo leitor, que deflagra a compreensão do tema e características do poema: a aspiração humana pelo transcendente.
5. as expressões “de cristais gelados” e “vão vestindo...” colocam em relevo as sensações táteis.
6.“Num cortejo de cânticos alados/ Os arcanjos, as cítaras ferindo” traz em si a figura metonímia, em razão das sensações auditivas, táteis e olfativas.
7. os dois últimos versos da segunda estrofe denotam aspiração ao triunfo ascendente.
8. o último verso da segunda estrofe traz em si uma contradição entre material ou meio e finalidade para a qual se destina.
9. o poeta utilizou-se da inversão como recurso no início da segunda estrofe.
10. a expressão “As cítaras ferindo” caracteriza os fundamentos do gênero lírico: a presença da dor e do sofrimento como principais motivadores da composição poética.
A soma dos números correspondentes às sentenças acima incorretas, de conformidade com o texto é:
Leia o seguinte poema de Cruz e Sousa para a Questão.
Siderações
Para as Estrelas de cristais gelados
As ânsias e os desejos vão subindo,
Galgando azuis e siderais noivados
De nuvens brancas a amplidão vestindo...
Num cortejo de cânticos alados
Os arcanjos, as cítaras ferindo,
Passam, das vestes nos troféus prateados,
As asas de ouro finamente abrindo...
Dos etéreos turíbulos de neve
Claro incenso aromal, límpido e leve,
Ondas nevoentas de Visões levanta...
E as ânsias e os desejos infinitos
Vão com os arcanjos formulando ritos
Da Eternidade que nos Astros canta...
CRUZ e SOUSA, João. Siderações. In: Broquéis. Poemas.L&PM Pocket: Porto Alegre, 2011. p.25.
Ainda sobre o poema Siderações, analise as afirmativas seguintes, utilizando C para correto e I para incorreto, na sequência de 1 a 10:
1. A terceira estrofe apresenta uma confluência sensorial em que se misturam várias sensações: olfativas, visuais e táteis, sendo que a palavra ‘neve’ sugere mais de uma possiblidade sensorial e, no caso do simbolismo, expressa a concepção da busca pela pureza, pela alvura.
2. Os dois últimos versos da terceira estrofe constituem-se de sujeito, objeto e ação, numa sentença de sentido pleno.
3. Os “turíbulos” agem como dispersores de elemento que visa a transcendência.
4. No poema, a junção dos elementos ‘claro’, ‘límpido’, ‘leve’ e ‘nevoento’ retira do cerimonial do turíbulo a possibilidade do mistério e das interrogações, não havendo contradição entre o emprego de tais termos e o significado que emitem.
5.Na última estrofe “as ânsias e os desejos infinitos” tomam um sentido contrário ao que é apresentado na primeira estrofe.
6. O verso “Vão com os arcanjos formulando ritos”, permite a assertiva moderna de que o homem é terreno, mas aspira à transcendência espiritual e de que é por meio dos ritos e elementos que visam à transcendência que ele faz tentativas de incursão a esse universo.
7. O último verso contém a informação de que a busca pelos “Astros” converte-se em busca pela “Eternidade”, sugerindo a ideia de distanciamento, de longa jornada, mas também de possibilidade, já que o poema dá ao leitor dicas de como buscar, mesmo entre ânsias e desejos, a Eternidade.
8. A temática apresentada no poema destoa completamente da regularidade dos temas eleitos na prémodernidade, já que propõe um contéudo inteiramente novo e cotidiano.
9. Cruz e Sousa, em Siderações, faz concessões à estética parnasiana, introduzindo a ideia de literatura de cunho político, o que pode ser expresso pelo tema central do poema, que propõe a universalização de acesso à ‘Eternidade’.
10. Siderações, que é um poema simbolista, faz parte de um conjunto de obras poéticas que tiveram sua existência marcada apenas na poesia e não em outros gêneros literários.
A altenativa correspondente à análise é:
Leia o excerto de Luzia-Homem para as Questão.
O francês Paul – misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral – costumava vaguear pelos ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com esboços de tipos originais, cenas e paisagens – trabalho paciente e douto, perdido no seu espólio de alfarrábios, de coleções de Botânica e Geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como um santo.
Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:
“Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça.”
Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinquenta tijolos.
Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.
Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.
– É de uma soberbia desmarcada – diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.
– A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona – murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes.
– Aquilo nem parece mulher fêmea – observava uma velha alcoveta e curandeira de profissão.
– Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...
– Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! – maldou uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de piranha, toda adornada de jóias de pechisbeque e fios de miçanga, muito besuntada de óleos cheirosos.
– Não diga isso que é uma blasfêmia – atalhou Teresinha loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa.
– Por ela eu puno; meto a mão no fogo...
– Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira...
– Mas você não pode negar que ela vive no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moura de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo...
– Tu a defendes, porque és parceira dela...
– Antes fosse!... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta canalhada de retirantes... Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha...
– Quem perdeu tudo isso para ela achar?... – obtemperou numa rasgada gargalhada de sarcasmo brutal, a roliça cabocla de agudos dentes.
– Qual?... Vão atrás da sonsa!...
– Deixem estar que há de ser como as outras. Em boniteza, verdade, verdade, mete vocês todas num chinelo. Aquilo é mulher para dar e apanhar – disse chasqueando um soldado de linha, destacado no Curral do Açougue, para manter a ordem, pois não raro rixavam e se engalfinhavam mulheres, ou se esboroavam homens por fúteis pretextos: houvera mesmo sérios conflitos e lutas sangrentas, tão abatido estava, naquela pobre gente o senso moral
– Vão ver que você, seu Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...
Crapiúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões dourados, o cinturão e a baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouly da pomada, que lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía, apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal caprichoso, e fútil, a mulher de todas as categorias e condições sociais, talvez porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas manifestações da força.
Contavam dele histórias emotivas, aventuras galantes, feitos de bravura, façanhas na perseguição de criminosos célebres; ele estivera nas escoltas que prenderam o facínora José Gabriel e o cangaceiro Zé Antônio do Fechado, cavaleiro e bravo à antiga, de raça de heróis, os Brilhantes, Ataídes, e Vicente Lopes do Caminhadeira, representantes dispersos, atávicos, espécimes ferozes de banditismo que foi a glória de Portugal, e lhe conquistou mundos, descobrindo-os, roubando-os com a indômita coragem de piratas, consagrados pela imperecível gratidão da pátria à póstera veneração.
Não faltavam ao soldado feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa bem conformada, sem vícios que lhe dessem o realce de um afortunado. Dizia-se, à puridade, nos colóquios da protérvia popular, que, antes de ser recrutado por audácias sensuais, e envergar a farda, fora guarda-costas de um famigerado fazendeiro da Barbalha, onde executara proezas cruéis, de pasmar, em verdes anos, pois mal lhe despontava, então, o buço. Tinha o ativo de três mortes e outros crimes menores, valendo-lhe isto por título ao temeroso respeito do povo.
OLYMPIO, domingos. Luzia-Homem. Tecnoprint: Rio de Janeiro, s/d. p.15-18.
Luzia-Homem faz parte do conjunto de obras do Realismo, escola literária que se opõe ao Romantismo, propondo a objetividade em detrimento da subjetividade na representação do mundo exterior.
Acerca do Realismo, é certo que:
1. propõe uma “leitura” científica da realidade pela arte.
2. o contexto histórico, científico e social influenciou determinantemente suas características estéticas e entre as transformações ocorridas na época estão a crescente urbanização de metrópoles, as teorias de desenvolvimento do ser humano, tal qual a a teoria do evolucionista de Charles Darwin, assim como as teorias marxistas.
3. tinha no procedimento de observação o ponto de partida para o ato criativo.
4. almejava o retrato fiel e parcimonioso, livre de influências ideológicas na representacão da realidade pela literatura.
5. o romance foi tomado como um documento social, livre de preconceitos e ideias deterministas.
6. na prosa e na poesia, concebe a literatura e o homem como determinantes do meio social.
7. contrastado com o Naturalismo, induz o leitor a interpretações e conclusões sobre fatos, enquanto este faz interpretações diretas dos fatos, expondo conclusões ao leitor.
8. focaliza aspectos de natureza sociológica, tal como o faz Machado de Assis, enquanto o Naturalismo focaliza aspectos de natureza “biopsicológica”, tal como o faz Aloísio de Azevedo em O cortiço.
9. tanto quanto o Naturalismo, é considerado anticlerical, antirromântico e antiburguês.
10. tem como tendência na poesia o Parnasianismo, regido pelas leis características da objetividade e descritivismo, marcado também pelos ideais de cientificismo e tentativa de imparcialidade.
A soma dos números das declarações acima corretas é:
Leia o excerto de Luzia-Homem para as Questão.
O francês Paul – misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral – costumava vaguear pelos ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com esboços de tipos originais, cenas e paisagens – trabalho paciente e douto, perdido no seu espólio de alfarrábios, de coleções de Botânica e Geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como um santo.
Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:
“Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça.”
Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinquenta tijolos.
Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.
Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.
– É de uma soberbia desmarcada – diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.
– A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona – murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes.
– Aquilo nem parece mulher fêmea – observava uma velha alcoveta e curandeira de profissão.
– Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...
– Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! – maldou uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de piranha, toda adornada de jóias de pechisbeque e fios de miçanga, muito besuntada de óleos cheirosos.
– Não diga isso que é uma blasfêmia – atalhou Teresinha loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa.
– Por ela eu puno; meto a mão no fogo...
– Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira...
– Mas você não pode negar que ela vive no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moura de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo...
– Tu a defendes, porque és parceira dela...
– Antes fosse!... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta canalhada de retirantes... Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha...
– Quem perdeu tudo isso para ela achar?... – obtemperou numa rasgada gargalhada de sarcasmo brutal, a roliça cabocla de agudos dentes.
– Qual?... Vão atrás da sonsa!...
– Deixem estar que há de ser como as outras. Em boniteza, verdade, verdade, mete vocês todas num chinelo. Aquilo é mulher para dar e apanhar – disse chasqueando um soldado de linha, destacado no Curral do Açougue, para manter a ordem, pois não raro rixavam e se engalfinhavam mulheres, ou se esboroavam homens por fúteis pretextos: houvera mesmo sérios conflitos e lutas sangrentas, tão abatido estava, naquela pobre gente o senso moral
– Vão ver que você, seu Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...
Crapiúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões dourados, o cinturão e a baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouly da pomada, que lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía, apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal caprichoso, e fútil, a mulher de todas as categorias e condições sociais, talvez porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas manifestações da força.
Contavam dele histórias emotivas, aventuras galantes, feitos de bravura, façanhas na perseguição de criminosos célebres; ele estivera nas escoltas que prenderam o facínora José Gabriel e o cangaceiro Zé Antônio do Fechado, cavaleiro e bravo à antiga, de raça de heróis, os Brilhantes, Ataídes, e Vicente Lopes do Caminhadeira, representantes dispersos, atávicos, espécimes ferozes de banditismo que foi a glória de Portugal, e lhe conquistou mundos, descobrindo-os, roubando-os com a indômita coragem de piratas, consagrados pela imperecível gratidão da pátria à póstera veneração.
Não faltavam ao soldado feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa bem conformada, sem vícios que lhe dessem o realce de um afortunado. Dizia-se, à puridade, nos colóquios da protérvia popular, que, antes de ser recrutado por audácias sensuais, e envergar a farda, fora guarda-costas de um famigerado fazendeiro da Barbalha, onde executara proezas cruéis, de pasmar, em verdes anos, pois mal lhe despontava, então, o buço. Tinha o ativo de três mortes e outros crimes menores, valendo-lhe isto por título ao temeroso respeito do povo.
OLYMPIO, domingos. Luzia-Homem. Tecnoprint: Rio de Janeiro, s/d. p.15-18.
Analise as sentenças acerca do romance Luzia-Homem e atribua como julgamentos: ‘Falsa (F)’ ou ‘Verdadeira (V)’
1. O foco narrativo, orientado pela terceira pessoa do discurso, acarreta à narrativa certo distanciamento, reportanto o que é chamado de ‘onisciência’ ao narrador, o qual é seletivo, tendencioso e altamente envolvido com os fatos.
2. Luzia, personagem-protagonista, expressa o que em Literatura é chamado de personagem-tipo, ou seja, um pesonagem plano, que sofre mudanças ao longo da narrativa.
3. O espaço em Luzia-Homem é determinante na caracterização dos personagens, onde impera a lei da sobrevivência e do mais forte.
4. Apesar de a linguagem adotada no referido romance apresentar rebuscamento, em certas passagens, há introdução de uma linguagem mais cotidiana, ainda que incipiente no Realismo brasileiro, só vai alcançar o apogeu de sua utilização no Modernismo de primeira fase.
5. Há no trecho transcrito a presença de um outro gênero textual, evidenciando o diálogo intergênero, o que também representa uma inovação dentro do gênero literário, para o período em que a obra foi escrita.
6. A predominância do tempo psicológico é uma dominante nessa obra, assim como ocorre nas obras de Machado de Assis, escritor contemporâneo de Domingos Olympio.
7. Nesta obra fica evidente a influência das ideias evolucionistas, inclusive palavras que são utilizadas no romance, que são compatíveis com tal teoria e com os pressupostos ideológicos que sustentam o Realismo/ Naturalismo, como macho e fêmea.
8. Nesta obra fica evidente a tentativa de formação de uma “identidade nacional”, uma das características também atribuídas ao Realismo brasileiro, o que pode ser ilustrado pela figura de estrangeiros que contribuem e fazem parte de nosso universo cultural, como o francês Paul.
9. A ausência de longas descrições é uma constante no texto, evidenciando a imagem de parcos recursos, personalidade frágil e indolente dos personagens.
10. A figura de Luzia, em Luzia-Homem, como a de todas as personagens do sexo feminino, está de acordo com uma figura altiva, forte, determinada e subjugada, típica dos romances naturalistas.
A alternativa que contempla a sequência correta dos julgamentos das afirmações é: