UNIPAM 2021
67 Questões
Leia o texto a seguir para responder à questão.
Imaginário e contágio psíquico
Segundo o documentário "The town that nearly danced itself to death" (2016) da BBC e a Revista Galileu (2016), no ano de 1518, na cidade de Estrasburgo, na França, uma mulher chamada Frau Troffea iniciou passos de dança no meio de uma rua. Em uma semana, 34 indivíduos, mulheres, homens e crianças, estavam contagiados pela dança que a mulher iniciara; em um mês, cerca de quatrocentos indivíduos ainda continuavam a dançar, tomando ruas adjacentes. Inicialmente, "médicos e astrônomos da época concluíram que a epidemia era uma doença natural, causada por "sangue quente". Sem que se soubesse como lidar com a situação, consta que "os habitantes saudáveis construíram palcos e levaram músicos ao local, pensando que a crise cessaria se fosse estimulada".
Entretanto, a estimulação por meio da música agravou o contágio, e a certo ponto da epidemia, os indivíduos já não dançavam mais por prazer, mas era impossível parar de dançar. Os relatos afirmam que, por não conseguirem parar de dançar, diversos indivíduos morreram de ataque cardíaco, derrame cerebral ou exaustão. A Revista Galileu ainda menciona que um jornal da época noticiou que cerca de quinze indivíduos morreram por dia durante esse estranho evento.
Esse caso, que poderia ser chamado de possessão coletiva, ocorrido em Estrasburgo, durou quatro meses, até cessar sem nenhuma causa aparente. Os indivíduos que sobreviveram voltaram a suas vidas cotidianas, enquanto "especialistas discutiram se a epidemia era uma doença real ou um fenômeno social. As evidências acabaram apontando que a epidemia era uma espécie de contágio cultural". O termo "contágio cultural", escolhido para designar o ocorrido, não poderia ser mais feliz, e se fôssemos buscar um nome mais apropriado, a partir do que hoje conhecemos sobre Psicologia Arquetípica, poderia ser designado por contágio psíquico.
Compreender de que forma esses contágios se dão alarga a discussão relativa aos fenômenos das massas. Desloca a atenção para o momento contemporâneo, no qual as massas, como tradicionalmente eram compreendidas, dissolvem-se, enquanto processos rizomáticos tomam seu lugar.
Na era das redes, em que cada nodo abriga potencialmente uma outra rede e em que as redes se entrelaçam de maneira complexa e não causal, problematizar o conceito de rede para pensar os fenômenos culturais, buscando por uma noção de rede mais complexa e menos tecno-funcional, nos aproxima, inevitavelmente, do Inconsciente Coletivo, como proposto por Jung.
É nesse sentido que não se pode considerar superados os fenômenos das massas, ainda que revisitemos toda a teoria sobre a qual suas análises se assentem até o final do século XX, sendo prudente não menosprezarmos os movimentos coletivos e o potencial de ressurgimento de um Leviatã, que agora se ergue de uma nova maneira.
(Malena Contrera & Leonardo Torres. Imaginário e contágio psíquico. Intexto, Porto Alegre, n. 40, pp. 11-22, 2017 [excerto]).
Conforme o texto, os surtos de histeria coletiva, que os autores chamam de "contágio psíquico", ou "fenômenos das massas", caracterizam-se por
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Imaginário e contágio psíquico
Segundo o documentário "The town that nearly danced itself to death" (2016) da BBC e a Revista Galileu (2016), no ano de 1518, na cidade de Estrasburgo, na França, uma mulher chamada Frau Troffea iniciou passos de dança no meio de uma rua. Em uma semana, 34 indivíduos, mulheres, homens e crianças, estavam contagiados pela dança que a mulher iniciara; em um mês, cerca de quatrocentos indivíduos ainda continuavam a dançar, tomando ruas adjacentes. Inicialmente, "médicos e astrônomos da época concluíram que a epidemia era uma doença natural, causada por "sangue quente". Sem que se soubesse como lidar com a situação, consta que "os habitantes saudáveis construíram palcos e levaram músicos ao local, pensando que a crise cessaria se fosse estimulada".
Entretanto, a estimulação por meio da música agravou o contágio, e a certo ponto da epidemia, os indivíduos já não dançavam mais por prazer, mas era impossível parar de dançar. Os relatos afirmam que, por não conseguirem parar de dançar, diversos indivíduos morreram de ataque cardíaco, derrame cerebral ou exaustão. A Revista Galileu ainda menciona que um jornal da época noticiou que cerca de quinze indivíduos morreram por dia durante esse estranho evento.
Esse caso, que poderia ser chamado de possessão coletiva, ocorrido em Estrasburgo, durou quatro meses, até cessar sem nenhuma causa aparente. Os indivíduos que sobreviveram voltaram a suas vidas cotidianas, enquanto "especialistas discutiram se a epidemia era uma doença real ou um fenômeno social. As evidências acabaram apontando que a epidemia era uma espécie de contágio cultural". O termo "contágio cultural", escolhido para designar o ocorrido, não poderia ser mais feliz, e se fôssemos buscar um nome mais apropriado, a partir do que hoje conhecemos sobre Psicologia Arquetípica, poderia ser designado por contágio psíquico.
Compreender de que forma esses contágios se dão alarga a discussão relativa aos fenômenos das massas. Desloca a atenção para o momento contemporâneo, no qual as massas, como tradicionalmente eram compreendidas, dissolvem-se, enquanto processos rizomáticos tomam seu lugar.
Na era das redes, em que cada nodo abriga potencialmente uma outra rede e em que as redes se entrelaçam de maneira complexa e não causal, problematizar o conceito de rede para pensar os fenômenos culturais, buscando por uma noção de rede mais complexa e menos tecno-funcional, nos aproxima, inevitavelmente, do Inconsciente Coletivo, como proposto por Jung.
É nesse sentido que não se pode considerar superados os fenômenos das massas, ainda que revisitemos toda a teoria sobre a qual suas análises se assentem até o final do século XX, sendo prudente não menosprezarmos os movimentos coletivos e o potencial de ressurgimento de um Leviatã, que agora se ergue de uma nova maneira.
(Malena Contrera & Leonardo Torres. Imaginário e contágio psíquico. Intexto, Porto Alegre, n. 40, pp. 11-22, 2017 [excerto]).
O texto de Contrera e Torres apresenta a ocorrência de uma estranha epidemia de dança na França no séc. XVI, o que levou pessoas à exaustão e à morte. A seguir, você tem frases extraídas do texto ―Histeria coletiva pode atacar em qualquer lugar, a qualquer hora‖, com um conjunto de informações oferecidas por um psiquiatra do Hospital Santa Mônica, de São Paulo, mostrando as causas da histeria coletiva e as estratégias para se evitarem seus possíveis surtos durante a pandemia de covid-19
(Disponível em https://hospitalsantamonica.com.br/a-histeria-coletiva-pode-atacar-em-qualquer-lugar-a-qualquer-hora/).
I. "Surtos de doenças misteriosas são mais comuns do que pensamos – muitas vezes um culpado é descoberto, mas o estresse psicológico e a ansiedade às vezes são as piores causas".
II. "Desde a Idade Média até hoje, temos registro das epidemias de histeria. Ocasionalmente, a doença persiste por dias; mas geralmente, quando a multidão aflita se dispersa, os sintomas tendem a desaparecer, provavelmente porque só são contagiosas quando novas vítimas ficam observando outras adoecendo".
III. "Os ingredientes essenciais – grupos sob estresse psicológico e físico, geralmente com fome, cansado ou ambos – se reúnem quase diariamente em todo o mundo".
IV. "A força e o poder da dinâmica de grupo tendem a assumir o controle, e as pessoas são absorvidas pelos sintomas da multidão".
A partir da análise das frases, pode-se afirmar que aquelas que identificam e explicam as motivações que levaram à "epidemia de dança" na França renascentista são
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Imaginário e contágio psíquico
Segundo o documentário "The town that nearly danced itself to death" (2016) da BBC e a Revista Galileu (2016), no ano de 1518, na cidade de Estrasburgo, na França, uma mulher chamada Frau Troffea iniciou passos de dança no meio de uma rua. Em uma semana, 34 indivíduos, mulheres, homens e crianças, estavam contagiados pela dança que a mulher iniciara; em um mês, cerca de quatrocentos indivíduos ainda continuavam a dançar, tomando ruas adjacentes. Inicialmente, "médicos e astrônomos da época concluíram que a epidemia era uma doença natural, causada por "sangue quente". Sem que se soubesse como lidar com a situação, consta que "os habitantes saudáveis construíram palcos e levaram músicos ao local, pensando que a crise cessaria se fosse estimulada".
Entretanto, a estimulação por meio da música agravou o contágio, e a certo ponto da epidemia, os indivíduos já não dançavam mais por prazer, mas era impossível parar de dançar. Os relatos afirmam que, por não conseguirem parar de dançar, diversos indivíduos morreram de ataque cardíaco, derrame cerebral ou exaustão. A Revista Galileu ainda menciona que um jornal da época noticiou que cerca de quinze indivíduos morreram por dia durante esse estranho evento.
Esse caso, que poderia ser chamado de possessão coletiva, ocorrido em Estrasburgo, durou quatro meses, até cessar sem nenhuma causa aparente. Os indivíduos que sobreviveram voltaram a suas vidas cotidianas, enquanto "especialistas discutiram se a epidemia era uma doença real ou um fenômeno social. As evidências acabaram apontando que a epidemia era uma espécie de contágio cultural". O termo "contágio cultural", escolhido para designar o ocorrido, não poderia ser mais feliz, e se fôssemos buscar um nome mais apropriado, a partir do que hoje conhecemos sobre Psicologia Arquetípica, poderia ser designado por contágio psíquico.
Compreender de que forma esses contágios se dão alarga a discussão relativa aos fenômenos das massas. Desloca a atenção para o momento contemporâneo, no qual as massas, como tradicionalmente eram compreendidas, dissolvem-se, enquanto processos rizomáticos tomam seu lugar.
Na era das redes, em que cada nodo abriga potencialmente uma outra rede e em que as redes se entrelaçam de maneira complexa e não causal, problematizar o conceito de rede para pensar os fenômenos culturais, buscando por uma noção de rede mais complexa e menos tecno-funcional, nos aproxima, inevitavelmente, do Inconsciente Coletivo, como proposto por Jung.
É nesse sentido que não se pode considerar superados os fenômenos das massas, ainda que revisitemos toda a teoria sobre a qual suas análises se assentem até o final do século XX, sendo prudente não menosprezarmos os movimentos coletivos e o potencial de ressurgimento de um Leviatã, que agora se ergue de uma nova maneira.
(Malena Contrera & Leonardo Torres. Imaginário e contágio psíquico. Intexto, Porto Alegre, n. 40, pp. 11-22, 2017 [excerto]).
O texto de Contrera e Torres busca uma explicação para o "contágio psíquico" no conceito de inconsciente coletivo, de Carl Gustav Jung (1875-1961). Jung, psicanalista suíço, em seu livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo (1959), assim define esse conceito: "O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição subjetiva".
De acordo com Contrera e Torres, esse conceito pode ser usado para compreender os "fenômenos das massas" nas redes sociais porque
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Imaginário e contágio psíquico
Segundo o documentário "The town that nearly danced itself to death" (2016) da BBC e a Revista Galileu (2016), no ano de 1518, na cidade de Estrasburgo, na França, uma mulher chamada Frau Troffea iniciou passos de dança no meio de uma rua. Em uma semana, 34 indivíduos, mulheres, homens e crianças, estavam contagiados pela dança que a mulher iniciara; em um mês, cerca de quatrocentos indivíduos ainda continuavam a dançar, tomando ruas adjacentes. Inicialmente, "médicos e astrônomos da época concluíram que a epidemia era uma doença natural, causada por "sangue quente". Sem que se soubesse como lidar com a situação, consta que "os habitantes saudáveis construíram palcos e levaram músicos ao local, pensando que a crise cessaria se fosse estimulada".
Entretanto, a estimulação por meio da música agravou o contágio, e a certo ponto da epidemia, os indivíduos já não dançavam mais por prazer, mas era impossível parar de dançar. Os relatos afirmam que, por não conseguirem parar de dançar, diversos indivíduos morreram de ataque cardíaco, derrame cerebral ou exaustão. A Revista Galileu ainda menciona que um jornal da época noticiou que cerca de quinze indivíduos morreram por dia durante esse estranho evento.
Esse caso, que poderia ser chamado de possessão coletiva, ocorrido em Estrasburgo, durou quatro meses, até cessar sem nenhuma causa aparente. Os indivíduos que sobreviveram voltaram a suas vidas cotidianas, enquanto "especialistas discutiram se a epidemia era uma doença real ou um fenômeno social. As evidências acabaram apontando que a epidemia era uma espécie de contágio cultural". O termo "contágio cultural", escolhido para designar o ocorrido, não poderia ser mais feliz, e se fôssemos buscar um nome mais apropriado, a partir do que hoje conhecemos sobre Psicologia Arquetípica, poderia ser designado por contágio psíquico.
Compreender de que forma esses contágios se dão alarga a discussão relativa aos fenômenos das massas. Desloca a atenção para o momento contemporâneo, no qual as massas, como tradicionalmente eram compreendidas, dissolvem-se, enquanto processos rizomáticos tomam seu lugar.
Na era das redes, em que cada nodo abriga potencialmente uma outra rede e em que as redes se entrelaçam de maneira complexa e não causal, problematizar o conceito de rede para pensar os fenômenos culturais, buscando por uma noção de rede mais complexa e menos tecno-funcional, nos aproxima, inevitavelmente, do Inconsciente Coletivo, como proposto por Jung.
É nesse sentido que não se pode considerar superados os fenômenos das massas, ainda que revisitemos toda a teoria sobre a qual suas análises se assentem até o final do século XX, sendo prudente não menosprezarmos os movimentos coletivos e o potencial de ressurgimento de um Leviatã, que agora se ergue de uma nova maneira.
(Malena Contrera & Leonardo Torres. Imaginário e contágio psíquico. Intexto, Porto Alegre, n. 40, pp. 11-22, 2017 [excerto]).
Na frase "Sem que se soubesse como lidar com a situação, consta que os habitantes saudáveis construíram palcos e levaram músicos ao local, pensando que a crise cessaria se fosse estimulada", a primeira oração tem sentido de
Um diário do ano da peste
Naquele tempo, conforme aumentava a devastação, também crescia o pavor das pessoas, que faziam mil coisas indescritíveis, movidas pela fúria de seu medo, enquanto outras faziam o mesmo na agonia da doença. Isso foi muito impressionante. Alguns saíam pelas ruas gemendo, chorando e contorcendo as mãos. Outros rezavam erguendo as mãos ao Céu, pedindo misericórdia a Deus. Na verdade, não sei dizer se faziam isso por loucura, mas quando agiam com consciência era indicação de uma mente mais séria, e rezar, fosse como fosse, era muito melhor do que os berros e gemidos que, todos os dias, principalmente ao anoitecer, escutavam-se pelas ruas. Suponho que o mundo já ouviu falar no famoso Solomon Eagle, um entusiasta. Embora não estivesse de forma alguma contaminado, a não ser na sua cabeça, ele saía por aí, denunciando o castigo imposto à cidade de uma maneira aterradora, às vezes completamente nu, com uma panela de carvão em brasa na cabeça. O que dizia ou fingia dizer nunca consegui realmente entender.
Não sei se aquele pregador era um alienado ou se fazia isso por pura preocupação com os pobres. Saía todas as noites pelas ruas de Whitechapel, repetindo continuamente, com as mãos para o alto, esta passagem da liturgia da Igreja: "Salvai-nos, bom Deus! Salvai Vosso povo, a quem redimistes com Vosso mais precioso sangue". Não posso falar com certeza sobre essas coisas, pois estes foram apenas exemplos pungentes que se apresentaram quando olhava pelas janelas do meu quarto (já que raramente abri as venezianas) enquanto me confinei dentro de casa, durante o ataque mais violento da pestilência. [...].
Uma pobre e infeliz senhora, esposa de um cidadão de prestígio, foi (se a história for verdadeira) assassinada por uma destas criaturas em Aldersgate Street ou naquele caminho. Ele vinha esbravejando e cantando completamente louco pela rua. O povo disse que ele estava só bêbado, mas ele mesmo disse que estava com a peste, o que parecia ser verdade. Ao encontrar-se com a senhora, quis beijá-la. Ela ficou aterrorizada de medo, pois ele era um sujeito rude, e fugiu dele, mas a rua tinha poucos moradores e não surgiu ninguém por perto para ajudá-la. Quando viu que ele a alcançaria, ela virou-se e empurrou-o com tanta força que ele, estando fraco, caiu de costas no chão. Muito infelizmente, porém, ela estava tão perto que, depois de se levantar, ele dominou-a e beijou-a. O pior de tudo foi depois de dar o beijo, quando ele disse a ela que estava com a peste, e perguntou por que ela não deveria sofrer tanto quanto ele. Ela, sendo jovem e com um filho, já se apavorara antes, mas ao ouvi-lo dizer que tinha a peste, gritou e caiu no chão num desmaio ou mal-estar. Depois, recuperou-se um pouco, mesmo que aquilo a tenha matado em poucos dias. Nunca soube se ela já estava com a peste ou não.
(Daniel Defoe. Um diário do ano da peste. Trad. Eduardo San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2014, pp. 121-122 e 183).
Daniel Defoe, ao compor a cena de desespero coletivo dos habitantes de Londres durante a peste de 1665, focaliza em especial uma figura da época, Solomon Eagle (1618-1683), um membro da facção religiosa dos quakers a quem Defoe chama de "entusiasta".
Na cena retratada, o próprio autor põe em xeque as motivações da conduta do personagem, caracterizando-o como indivíduo
Um diário do ano da peste
Naquele tempo, conforme aumentava a devastação, também crescia o pavor das pessoas, que faziam mil coisas indescritíveis, movidas pela fúria de seu medo, enquanto outras faziam o mesmo na agonia da doença. Isso foi muito impressionante. Alguns saíam pelas ruas gemendo, chorando e contorcendo as mãos. Outros rezavam erguendo as mãos ao Céu, pedindo misericórdia a Deus. Na verdade, não sei dizer se faziam isso por loucura, mas quando agiam com consciência era indicação de uma mente mais séria, e rezar, fosse como fosse, era muito melhor do que os berros e gemidos que, todos os dias, principalmente ao anoitecer, escutavam-se pelas ruas. Suponho que o mundo já ouviu falar no famoso Solomon Eagle, um entusiasta. Embora não estivesse de forma alguma contaminado, a não ser na sua cabeça, ele saía por aí, denunciando o castigo imposto à cidade de uma maneira aterradora, às vezes completamente nu, com uma panela de carvão em brasa na cabeça. O que dizia ou fingia dizer nunca consegui realmente entender.
Não sei se aquele pregador era um alienado ou se fazia isso por pura preocupação com os pobres. Saía todas as noites pelas ruas de Whitechapel, repetindo continuamente, com as mãos para o alto, esta passagem da liturgia da Igreja: "Salvai-nos, bom Deus! Salvai Vosso povo, a quem redimistes com Vosso mais precioso sangue". Não posso falar com certeza sobre essas coisas, pois estes foram apenas exemplos pungentes que se apresentaram quando olhava pelas janelas do meu quarto (já que raramente abri as venezianas) enquanto me confinei dentro de casa, durante o ataque mais violento da pestilência. [...].
Uma pobre e infeliz senhora, esposa de um cidadão de prestígio, foi (se a história for verdadeira) assassinada por uma destas criaturas em Aldersgate Street ou naquele caminho. Ele vinha esbravejando e cantando completamente louco pela rua. O povo disse que ele estava só bêbado, mas ele mesmo disse que estava com a peste, o que parecia ser verdade. Ao encontrar-se com a senhora, quis beijá-la. Ela ficou aterrorizada de medo, pois ele era um sujeito rude, e fugiu dele, mas a rua tinha poucos moradores e não surgiu ninguém por perto para ajudá-la. Quando viu que ele a alcançaria, ela virou-se e empurrou-o com tanta força que ele, estando fraco, caiu de costas no chão. Muito infelizmente, porém, ela estava tão perto que, depois de se levantar, ele dominou-a e beijou-a. O pior de tudo foi depois de dar o beijo, quando ele disse a ela que estava com a peste, e perguntou por que ela não deveria sofrer tanto quanto ele. Ela, sendo jovem e com um filho, já se apavorara antes, mas ao ouvi-lo dizer que tinha a peste, gritou e caiu no chão num desmaio ou mal-estar. Depois, recuperou-se um pouco, mesmo que aquilo a tenha matado em poucos dias. Nunca soube se ela já estava com a peste ou não.
(Daniel Defoe. Um diário do ano da peste. Trad. Eduardo San Martin. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2014, pp. 121-122 e 183).
Na segunda parte do texto, Daniel Defoe relata uma cena alarmante sobre a "esposa de um cidadão de prestígio" que foi atacada por um indivíduo contaminado pela peste, querendo beijá-la. No Brasil de hoje, há matérias jornalísticas denunciando indivíduos soropositivos que contaminam parceiros sexuais propositadamente, embora entidades protetoras dos portadores de AIDS acusem as matérias de estigmatização de minorias. Uma notícia do site Terra assim expõe:
A prática foi denunciada por um estudante de medicina, no mês passado, em um grupo de discussão sobre questões LGBT no Facebook. O jovem de 24 anos, morador do interior de São Paulo, contou que recebeu o alerta de outros médicos e resolveu compartilhar com o máximo de pessoas possível. "O que me motivou a divulgar este absurdo foi saber que adolescentes estão sendo enganados por esses monstros", disse ele, que preferiu manter o anonimato, ao Terra. "Eles fazem isso por pura maldade, puro prazer em estragar a vida de pessoas que ainda são novas", completou.
(Disponível em https://www.terra.com.br/noticias/brasil/grupodifunde-taticas-na-web-para-espalhar-o-virus- iv,2d2024d11c71b410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html)
Conforme a versão apresentada por Daniel Defoe na cena referida, considerando a conduta dos personagens, ou seja, a "esposa de um cidadão de prestígio" e o homem estranho que estava com a peste, é possível afirmar que